quinta-feira, 3 de março de 2011

CICLO INTERDISCIPLINAR DE PALESTRAS “ASPECTOS DA MÚSICA NO SÉCULO XX”

NÚCLEO DE MÚSICA CONTEMPORÂNEA - NMC/ARTE/UEL
A IMPORTÂNCIA DA MÚSICA NO RITUAL KAINGANG

Kimiye Tommasino
08 de dezembro de 2.000

Introdução

Antes de falarmos da importância da música no ritual do Kikikoi, o ritual dos mortos que os Kaingang realizavam todos os anos e hoje é realizado apenas na Área Indígena Xapecozinho em Santa Catarina, é necessário falar sobre o lugar e a importância da música para as sociedades indígenas da América do Sul. Como há mais de 200 povos indígenas só no Brasil, isto significa que há aspectos gerais e outros mais específicos da musicologia indígena. Dentro de nossa exposição, seguiremos uma explanação que partirá dos aspectos mais gerais para os específicos porque o público em geral desconhece tanto a diversidade sociocultural indígena no Brasil quanto a realidade musical desses povos.

É preciso então dizer que no Brasil vivem mais de 200 povos indígenas que falam quase 180 línguas distintas. A população geral é estimada em pouco mais de 300 mil índios contando apenas as populações que vivem em áreas reservadas e administradas pelo Estado. Se levarmos em conta os que vivem “desaldeados”, dispersos em áreas rurais e urbanas, esse número certamente será bem maior mas é quase impossível fazer esse levantamento.

De qualquer forma podemos afirmar que esse imenso universo multicultural é praticamente desconhecido pelo grande público e antes mesmo de ser conhecido está sendo destruído e/ou modificado pela expansão da dominação cultural do Ocidente. Há sem dúvida um processo de homogeneização cultural e os índios não estão imunes a esse processo. Todos sabem que há 500 anos os índios são assediados pela cultura ocidental: agentes de toda espécie têm divulgado idéias (falsas naturalmente) sobre a superioridade da cultura européia e cristã e a inferioridade ou atraso das culturas indígenas. Além disso, a expansão da sociedade nacional ao destruir o meio ambiente e sua biodiversidade, destruiu também as bases materiais que sustentam ou sustentavam a sociodiversidade. Afinal, sabemos que a natureza não é somente boa para comer, mas é, principalmente, boa para pensar.

O primeiro ponto de diferença radical entre a cultura ocidental e as culturas indígenas é que no pensamento ocidental, Homem e Natureza estão separados, isto é, concebe-se o homem fora da natureza enquanto as sociedades indígenas em geral se pensam como parte dela. Portanto são diferentes cosmologias indígenas já que cada cultura foi construída de forma distinta mas que têm em comum esse paradigma: o Homem é inseparável da Natureza e é uma expressão dela assim como a Natureza está no Homem. É por isso que no pensamento indígena há uma antropomorfização da Natureza e uma naturalização do Homem. Mais do que isso, nas concepções dos povos indígenas não há separação entre os universos natural, social e sobrenatural: são esferas que se interpenetram e influenciam-se continuamente. Portanto, muito diferente da concepção ocidental onde cada esfera é vista e vivida como esferas estanques. Uma vez compreendida essa distinção básica entre a cultura ocidental, a nossa, e a dos povos indígenas, podemos falar do lugar e da importância das manifestações culturais de cada povo. Hoje falaremos da importância da música e da dança no ritual Kaingang. Isto porque música e dança compõem uma unidade indissolúvel, como vocês verão no decorrer dessa exposição.

A Importância da Música nas Sociedades Indígenas

Apesar da música ocupar um lugar absolutamente central na cosmologia e estrutura social dos povos indígenas, ela tem sido pouco estudada e são raros estudos sistemáticos realizados pela antropologia e especialistas em etnomusicologia. Existem muitos trabalhos na área de expressões estética e simbólica mas que enfatizam a ornamentação corporal, plumária, pintura do corpo e grafismo. Sobre a música indígena, no entanto, Lux Vidal que é especialista em etno-estética nos diz que

Apesar de uma rica documentação gravada e artigos  dispersos ou mesmo discos editados, existem apenas dois trabalhos aprofundados, o de Anthony Seeger sobre os índios Suyá (grupo Jê) e o de Rafael de Menezes Bastos, sobre os Kamayurá (Grupo Tupi), os dois pertencentes à área do Alto Xingu. Isto se deve em parte à dificuldade de encontrar pesquisadores formados tanto em música como em antropologia, filosofia, semiótica, etc. Deve-se também às inúmeras especificidades encontradas, o que exige uma alta especialização para cada caso, escolha difícil para os pesquisadores do terceiro mundo, pelo investimento necessário”(Vidal, 91:184).

Para a antropóloga Lux Vidal, “no Brasil, o interesse sempre se voltou para a música popular e a música afro-brasileira. (...) De um modo geral, no imaginário e de maneira difusa, o índio é concebido no seu aspecto visual, ornamental, relacionado com o mundo da natureza externa, com o colorido dos pássaros e com a majestade estética da floresta”(Idem: 185).

A música indígena ganhou mais interesse do grande público a partir da luta pela preservação ecológica dos “Povos da Floresta” quando a dupla Raoni e Sting se uniram em defesa da floresta amazônica. Vários cantores nacionais passaram a homenagear a música indígena tais como Milton Nascimento, Tom Jobim, Caetano, Gilberto Gil e, em especial Marlui Miranda.

Do lado das sociedades indígenas vários grupos acabaram editando suas músicas como os Kayapó, os Guarani, os Xavante. Mas tudo isso é muito recente. Além do interesse em divulgar suas músicas, há o interesse dos índios em conhecer as manifestações musicais dos outros grupos e muitas vezes incorporando músicas dessas outras etnias no seu próprio repertório (Vidal, 91:186/88.)

Dito isso podemos falar mais especificamente sobre os estudos da música indígena. Se são tantas as culturas, é preciso entender o papel da música no contexto específico de cada sociedade. Seeger explica que “formas de arte vocal, diferentes entre si, não podem ser tratadas isoladamente, sem relação com as demais. Em vez de estudarmos formas do falar e cantar em si mesmas, deveríamos estudá-las como gêneros inter-relacionados ... e (afirmarmos) a necessidade de tratar a música como parte de um corpo maior de formas estéticas que podem estar inter-relacionadas sistematicamente de modos vários”. Dessa forma, o falar, o cantar, o choro ritual, a oratória, são gêneros inter-relacionados e mesmo os gestos e a dança devem ser incorporados no estudo das formas expressivas (Vidal: 191).

Existem poucos estudos sistemáticos sobre a música indígena. Na década de 60 Desidério Aytai pesquisou a música dos Xavantes do Mato Grosso. Trata-se de uma análise musicológica da estrutura da música latu sensu, e um estudo dos instrumentos musicais enquanto cultura material. Nos anos 70 Helza Cameu elaborou um balanço da etnomusicologia no Brasil e analisou gravações de vários grupos indígenas.

Com os estudos realizados nos anos 70 por Anthony Seeger entre os Suyá e por Rafael de Menezes Bastos inicia-se uma nova fase (ou de fato começa-se a fazer uma verdadeira etnomusicologia?). Segundo Vidal (idem: 193), “a música indígena começa a ser estudada em seu contexto e é reiterada a importância da relação música-cultura no contexto da performance. Os trabalhos destes autores, servem também para criar um paradigma da etnomusicologia indígena brasileira.” Embora não seja estudo de grupo indígena, é importante registrar a pesquisa de Kilza Setti sobre a produção musical dos caiçaras do litoral norte de São Paulo.

Não há ainda no Brasil estudos sobre etnomúsica no contexto de mudança cultural e de contato. Por exemplo, nos rituais guarani e mesmo kaingang nota-se claramente a introdução de elementos incorporados do mundo ocidental (cruzes, velas, instrumentos musicais como violão e rabeca), mas que foram ressignicados no contexto indígena. Também não foram estudadas as influências da música indígena na música popular brasileira.

Sendo recente e restrita a contribuição da antropologia em relação aos estudos sobre música indígena, podemos trazer aqui algumas informações mais teóricas que se encontra no livro de Rafael sobre a musicológica Kamayurá. Segundo este autor, devemos a Lévi-Strauss a maior contribuição teórica para o estudo da música e sua relação com a cultura do grupo que a pratica. No caso, ele se refere às obras de Lévi-Strauss relativas à etnomitologia, conhecidas como Mitológicas. Evidentemente, não sendo eu especialista em etnomusicologia e muito menos em música, não poderei estar contribuindo para este aprofundamento nesta fala sobre os Kaingang. Farei, quando muito, uma pequena aproximação entre mitologia e música no ritual do kikikoi. A complementação de Jorgisnei que já fez sua estréia na etnomusicologia kaingang mostrará o que foi possível avançar até o presente momento para esta aproximação.
 

Falando da importância da música kaingang no contexto do ritual kikikoi


Francisco Schaden que pesquisou bastante os Xokleng e os Kaingang dos anos 1940 até 60, diz que as artes indígenas e a música em especial estão intimamente ligadas à vida religiosa da sociedade. Segundo suas palavras,

é difícil apontar um instrumento musical que não desempenhe papel de relevo nas cerimônias de culto. Em sua maioria, os sons produzidos pelos chocalhos ou maracás, pelos tambores, bastões de ritmo, buzinas, flautas, zunidores e outros instrumentos que acompanham as danças rituais dão a impressão de reproduzirem, antes de mais nada, determinados ruídos da natureza ou vozes de animais. Ora se parecem com o estrondo soturno dos trovões, ora com o bramido das cachoeiras ou com o sussurrar  do vento e das chuvas. Outras vezes se diria que imitam os gritos ou o gorgeio de certas aves. Mas na realidade, qualquer que seja sua origem, a música indígena tem uma significação muito mais profunda, decorrente de seu caráter sagrado e da função primordial de fornecer um liame entre a comunidade dos viventes e o reino dos mortos, dos heróis ou dos deuses.


Com efeito, diz Schaden, na maioria dos casos o som dos instrumentos musicais de nossos índios simboliza ou “é” a voz dos espíritos, dos antepassados míticos ou das almas dos defuntos. O Nhanderu (rezador) Guarani recorre aos sons rítmicos de seu maracá para se pôr em comunicação direta com a divindade suprema de sua religião. Os Tupí do litoral no século XVI interpretavam os ruídos do chocalho como a voz de algum espírito e o zunidor dos Bororo é um instrumento sagrado e parece reproduzir a voz dos ancestrais míticos. O mesmo se pode dizer dos sons das grandes flautas “kadukê” dos Munduruku. As trombetas ou buzinas de “jurupari” dos índios das Guianas reproduzem, da mesma forma, a voz dos espíritos. Assim, poderíamos multiplicar exemplos de outros povos indígenas.

O caráter sagrado da dança é, em geral, segundo Schaden, ainda mais manifesto do que na música. Constitui a parte essencial das festas religiosas e de outras cerimônias de interesse coletivo. Tanto é verdade que, em muitas sociedades indígenas, a execução de danças é uma atividade mais indispensável à vida comunitária do que, por exemplo, a caça, a pesca e o plantio da mandioca. Quer dizer, a preocupação com respeito aos espíritos e às forças sobrenaturais que povoam o universo, sobrepõem as preocupações com o que se há de comer no dia de amanhã.

Sobre o Kikikoi, o ritual dos mortos realizados pelos Kaingang, Schaden, lembra que Telêmaco Borba, um dos primeiros diretores de aldeamento da região do Tibagi, mesmo sem ter formação antropológica ou musical, registrou muitas informações etnográficas sobre esse povo. Coletou inclusive o mito através do qual explicam como aprenderam as danças que ocupam um lugar importante no ritual dos mortos. Vou reproduzir parte de seu registro:

Não sabiam cantar nem dançar. Em suas reuniões bebiam o quiquy, sentados junto ao fogo; sua boca, porém estava fechada; por esse motivo suas festas eram monótonas, e, salvo a alegria produzida pela embriaguez, tristes. Desejavam aprender a cantar e dançar, mas não havia quem os ensinasse; as outras gentes ainda não existiam. Um dia em que homens de Cayurucré andavam caçando, encontraram em uma clareira do mato um grande tronco de árvore caído; sobre ele estavam encostadas umas pequenas varas com folhas; a terra junto ao tronco muito limpa; examinando-a pareceu-lhes ver uma como pequenas pegadas de crianças; admiraram-se disso; à noite, em seus ranchos, contaram o que tinham visto e convidaram os outros a irem examinar o que seria. Ao outro dia foram todos, aproximaram-se cautelosamente do tronco e escutaram; daí a pouco viram um pequeno purungo, na ponta de uma varinha, que se movia produzindo um som assim: xi, xi, xi; as varas que estavam encostadas ao tronco, começaram a mover-se compassadamente, ao mesmo tempo que uma voz debil, porém clara, cantava assim: - emi no tin vè...è, è, è. Andò chò caé voá á. Ha, ha, ha. Emi no tin rè è. Emi no tin vè .....
Compreederam que aquilo era canto e dança, decoraram as palavras sem contudo as entender; aproximaram-se do tronco e só viram as varas e os pequenos purungos (Borba, 1908:24/25).

Após esse primeiro encontro ainda aprenderam outras músicas e danças. Os kaingang então fizeram festas onde reproduziram o que aprenderam e ainda inventaram outros cantos e danças. Mais tarde é que, estando o Kayurucré caçando na mata, encontrou um tamanduá-mirim e quando o caçador ia abatê-lo com um bastão, o animal ficou em pé e começou a cantar e dançar os mesmos cantos que eles tinham ouvido na clareira. Descobriram então quem tinha sido seu mestre. Os Kaingang nunca mais mataram os tamanduá.

Rafael de Menezes Bastos afirma que “o conceito de humanidade e, complementarmente, o de não-humanidade, juntos, parecem constituir um dos pontos capitais de formulação de toda e qualquer cultura, de tal forma isto se verificando a ponto de se poder dizer que todo processo de socialização é, basicamente, um processo de humanização. Dito de outra forma, significa dizer que é através de uma cultura específica que a espécie humana se humaniza e se diferencia das outras espécies. Assim, os Kaingang se humanizam através da cultura kaingang, isto é, vivendo de acordo com as regras sociais e práticas que possuem significados próprios. No ritual dos mortos, os Kaingang retornam aos tempos originários, deslocam-se do tempo presente ao tempo passado. (Re)Vivem o tempo mítico. No espaço ritual encontram-se com os espíritos de seus antepassados e os heróis civilizadores. Há que se tomar certos cuidados para se protegerem de possíveis males que esse encontro pode acarretar, por isso, se pintam com as pinturas de suas metades e dançam e cantam nos fogos da outra metade. Há que se observar regras e algumas funções só podem ser realizadas por determinadas categorias, os péin.

A realização do Kiki envolve um determinado número de participantes (60 a 100 indivíduos), o qual pode oscilar durante as etapas do processo ritual, podendo variar de um Kiki a outro. Independente do número de participantes, há funções determinadas - a reza, o tocar de instrumentos, realização de pinturas faciais dos participantes, o preparo e distribuição de alimentos e bebidas -, as quais devem ser preenchidas por um grupo constante de pessoas. (...) A realização do Kiki depende da solicitação dos parentes de alguém que veio a falecer no ano anterior ou nos anos anteriores ao Kiki. É necessário que hajam mortos das duas metades exogâmicas (Fernandes, R.C. et alter:2000:4).

Fernandes, Almeida e Sachi (idem:5) afirmam que: a) o Kiki constitui uma referência para o estabelecimento de critérios de sociabilidade (purificando nomes, ratificando o pertencimento e a relação entre as metades; definindo o prestígio dos organizadores, dos rezadores e dos mortos. b) o Kiki manipula elementos da tradição dualista Kaingang, oferecendo-se como um diacrítico étnico significativo; c) homens e mulheres desempenham papéis complementares, os quais podem ser traduzidos em termos de centro e periferia ritual, respectivamente.

Antes de começar a falar do ritual, é preciso resumir aqui o tipo de organização social, parentesco e cosmologia kaingang. Eles organizam o mundo natural e social em metades Kamé e Kairu, metades que se opõem e se complementam. A sociedade kaingang está internamente dividida em metade Kamé, relacionada com o lado oeste, e Kairu, com o lado leste. Cada metade possui duas seções: Kamé e Wonhétky são seções da metade Kamé, Kairu e Votor, da metade Kairu. Os Kamé possuem pintura de riscos, os Kairu de círculo. Cada metade possui qualidades que se completam na relação com a outra: o Kamé é mais forte, o Kairu mais fraco. Os casamentos devem sempre ocorrer entre Kamé e Kairu, isto é, um homem Kamé deve se casar com mulher Kairu e vice-versa. Cada metade tem o seu estoque de nomes próprios de modo que sabendo o nome, sabe-se a qual metade e pintura pertence a pessoa. O mundo vegetal e animal também são organizados em Kamé e Kairu.

Durante a realização do Kiki a divisão da sociedade em metades se torna visível. Além das metades Kamé e Kairu, também se visibilizam as categorias rá rengré e péin cujas pinturas são especiais e possuem funções cerimoniais fixas. A própria dinâmica das ações cerimoniais visibilizam a estrutura bipartida da sociológica kaingang que atravessa e inter-relaciona os universos, humano, natural e sobrenatural.

Qual seria então o lugar da música no ritual Kikikoi? Ficou claro que a música não pode ser compreendida em si mesma, mas no contexto geral em que se realiza. Em primeiro lugar, trata-se de música ritual e os ritos são ações, ao mesmo tempo estruturadas e estruturantes. O rito põe e repõe as regras que regem a vida da sociedade kaingang. As metades relacionam-se enquanto partes complementares que garantem o funcionamento da sociedade como um todo. Em outras palavras, é o “lugar privilegiado da encenação da complementaridade e da assimetria que preside as relações entre as metades, cada metade é encarregada do tratamento dos mortos da outra, afim de lhes liberar e lhes permitir enfim deixar o cemitério onde eles estavam confinados desde a sua morte. O ritual é composto por várias ações cerimoniais onde a assimetria e complementaridade subjacentes emergem e se explicitam: na própria preparação dos fogos, nas rezas, cantos e danças que acontecem em torno desses fogos, na visita ao cemitério e túmulos dos mortos a quem se oferece o Kiki.”

A música ritual pode ser interpretada como uma linguagem que põe em comunicação o mundo dos vivos e dos mortos. Mas não é apenas veículo de comunicação com os espíritos dos mortos. É também uma comunicação com os espíritos dos animais, das plantas e da natureza. Pode ser pensada como uma linguagem cosmológica. A música conecta as unidades diferenciadas do cosmos. O canto sempre aparece acompanhado por gestos rituais, movimentos de dança ritmados e ordenados, e é só neste conjunto que ganha seu sentido pleno. O “choro ritual” entoado pelas mulheres péin no cemitério , as rezas, os sons do Xykxy constituem diferentes modalidade de canto, de linguagem que põem em comunicação os mundos dos homens e os mundos dos espíritos dos animais, das plantas, dos mortos, dos heróis civilizadores e dos deuses. Temos que romper com as nossas classificações do universo e tentar, através de um grande esforço intelectual, entender que no universo cultural (simbólico e prático) dos povos indígenas há intercomunicação entre as esferas mas essa comunicação sempre se faz ritualmente porque no espaço ritual o tempo e o espaço são abolidos e com isso, também são abolidas as diferenças. Quer dizer, no espaço ritual todos os seres, naturais e sobrenaturais se misturam e entram em comunhão. Mas há que se tomar certos cuidados e as pinturas faciais são multifuncionais durante o kikikoi: servem para identificar as pessoas e suas respectivas metades e seções, para definir as categorias cerimonias e suas funções, mas, principalmente para se proteger dos espíritos dos mortos que poderiam querer levar os parentes vivos para o kumbâ (lugar onde vivem os mortos).

Encontrei em Borba uma tradução de 3 cantos para quando fazem enterramentos e referenda o que dissemos sobre a música como comunicação com o espírito do morto. No primeiro o canto diz na tradução livre do autor o seguinte: Passe com cuidado a ponte. Viva bem com os outros; assim como eles vivem bem, você também pode viver. Lá você há de ver muita coisa que já viu em minha terra, assim como o gavião. Teus parentes hão de vir te encontrar na ponte e te levarão com eles para a tua morada. O segundo diz: Passe bem pela ponte do rio grande; chegando ao campo diga aos outros: - eu estou aqui. Coma bem as frutas do comá e vire as pedras que têm limo antes de passar. O terceiro: Vá-se embora, viva bem como os outros que estão lá,

Enfim, são esses os esclarecimentos que adianto para que possam agora ouvir o que Jorgisnei tem a dizer. Acredito que o nosso trabalho interdisciplinar poderá produzir um melhor entendimento de uma cultura tão diversa da nossa e ao mesmo tempo tão universal que, ao final, podemos afirmar que somos todos iguais em essência. Assim sendo, ao entendermos sobre a cultura kaingang estaremos nos humanizando um pouco mais. 

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