terça-feira, 1 de março de 2011

IV RAM - REUNIÃO DE ANTROPOLOGIA DO MERCOSUL
Curitiba, 11 a 14 de novembro de 2001


FÓRUM DE INVESTIGAÇÃO JÊ DO SUL

Os Sentidos da Territorialização dos Kaingang nas Cidades

Kimiye Tommasino[1]

Resumo:
O fenômeno da urbanização de pessoas ou famílias indígenas vem chamando atenção dos órgãos públicos e, pelo menos nos estados do sul, vem sendo encarado como “problema”. Pretendemos apresentar um quadro geral sobre os sentidos do processo de territorialização dos Kaingang nas cidades e abrir um debate acerca dessa temática. A presença dos índios nas cidades está relacionada a vários objetivos: é onde vendem seu artesanato para obter renda, buscam acessar os equipamentos sociais (órgão indigenista, hospitais, escolas, repartições públicas), para participar de reuniões e eventos, e até mesmo como espaços de moradia e trabalho. Esse processo vem exigindo que os antropólogos se debrucem sobre esse fenômeno.Este artigo analisa alguns aspectos relacionados à importância das cidades na vida dos Kaingang em Londrina-PR e em Chapecó-SC: o primeiro grupo vive da cidade e o segundo na cidade. 




The urbanization phenomenon of people or Indian families is calling attention of the public department and, at least in the south states, it is being faced as a “problem”. We intend to present a general board about the sense of the process of territory construction of the Kaingang in the cities and open a debate within this theme. The presence of the Indians in the cities is related to several objectives. Sell workmanship for gains, acess to social equipment (indigenous department, hospitals, schools, government departures), participate of meetings and events, courses and even as spaces to live and work. This phenomenon is demanding that the anthropologists reflect over it. This article analyses some aspects related to the importance of the cities in the life of the Kaingang in Londrina-PR and in Chapecó-SC: the first group lives from the city and the second in the city.



Os Sentidos da Territorialização dos Kaingang nas Cidades


Introdução

Este texto tem como objetivo analisar alguns aspectos da territorialização dos Kaingang nas cidades e seus sentidos. De um lado buscou-se compreender os fatores externos que têm levado famílias indígenas a viverem da cidade ou na cidade. De outro, procurou-se detectar, da perspectiva dessas famílias, o(s) significado(s) dessa territorialização.
A nossa experiência tem como campo empírico dois casos: o dos Kaingang da região norte do Paraná que freqüentam a cidade de Londrina-PR desde que ela surgiu e que se tornou um espaço onde buscam parte de sua subsistência e solução para problemas de saúde, educação e outros serviços básicos que necessitam; e o dos Kaingang da bacia do Uruguai que criaram uma aldeia no centro de Chapecó-SC.

A produção antropológica sobre populações indígenas nas cidades

Podemos dizer que os índios se relacionam com as cidades desde o século XVI, ou seja, desde o seu surgimento. Na região sul as cidades surgiram com as reduções jesuíticas e serviam para sediar a administração das colônias portuguesa e espanhola. A própria construção das cidades teve como mão-de-obra os indígenas conquistados pelos europeus. Pennafort (1900: 355-36) afirma

A verdade é que os pobres indígenas do Brazil, que foram os verdadeiros constructores das cidades e das povoações, após a descoberta, e sem os quaes os portuguezes teriam perdido esta conquista, pois que eram impotentes para a colonisação de tão vasto território, e ainda mais impotentes para o defenderem dos francezes, dos hollandezes, dos inglezes, – a verdade é, dizemos, que os indígenas do Brazil não mereceram dos portuguezes senão o rigor e o máo trato, e, por sobrecarga, o desprezo dos próprios que delles descendem e que consentem no apagamento de todos os signaes de sua natural procedência.

O nosso interesse neste trabalho é analisar o fenômeno recente da urbanização de famílias kaingang e os sentidos desse processo. A produção antropológica é bastante escassa e apenas agora vem preocupando o poder público e incentivando a reflexão acadêmica.
O primeiro trabalho específico e sistemático sobre a urbanização de famílias indígenas foi realizado por Roberto Cardoso de Oliveira (1968) que estudou os Terena do Mato Grosso do Sul. Na segunda parte de seu livro Urbanização e Tribalismo o autor analisa os agrupamentos de “índios citadinos” que migraram das aldeias para as cidades de Aquidauana e Campo Grande e “nelas se fixaram como moradores permanentes ou de prolongada residência” (Oliveira, 1968: 126). Analisando as histórias e trajetórias de vida, Oliveira diz que essas migrações e deslocamentos eram experienciadas como

“mudança definitiva, não só implicando um deslocamento espacial, mas sobretudo, social: a intenção do Terena que sai de sua aldeia é ‘mudar de vida’ – a sua e a de seus familiares –, não podendo admitir (pelo menos idealmente) o retorno às condições de existência inerentes à Reserva. (...) Acredita melhorar efetivamente de vida: e quando é um chefe de família com muitos filhos em idade escolar, crê encontrar na cidade as escolas que não encontrou junto ao Posto Indígena, bastante desmoralizada na consciência tribal; acredita, ainda, obter na cidade a assistência médica que inexiste na Reserva; e está certo de encontrar nas condições de vida urbana, trabalho mais bem remunerado para si e empregos para seus filhos que não ‘estraguem o corpo’, isto é, que os mantenham afastados dos serviços braçais.”(idem: 126)

Apesar da separação radical implicada no movimento migratório para a cidade, representada como “nova vida”, isso não significava uma
desvinculação da comunidade de origem, onde o Terena deixa parentes e, freqüentemente, o seu lote de terra, guardado e respeitado por seus patrícios. Pelos menos enquanto o índio migrante não possui seu próprio lote na cidade (...), suas relações com a aldeia persistirão a ponto de manter certa periodicidade nas visitas que a elas fazem...” (idem, ibidem: 127).

Oliveira relaciona ainda outros motivos para migrar: os conflitos político-religiosos (nas aldeias Bananal e Ipegue) e uma epidemia de “febre” (na aldeia Buriti) ocorrida nos anos 30. O autor elaborou a seguinte tipologia de modalidades da migração terena para a cidade: a) migração direta da aldeia para a cidade; b) migração daqueles índios que, nascidos na aldeia, dela migraram para a fazenda e desta para a cidade; c) migração daqueles que nasceram na fazenda, migraram para as aldeias e destas para as cidades; e d) migração direta da fazenda para a cidade. (idem: 136)
Novas pesquisas sobre indígenas urbanos só começaram a ser realizadas nos anos 90 sendo a maioria na região norte, nas cidades de Boa Vista-RR e Manaus-AM, Nessas cidades várias etnias se fazem presentes.
A pesquisa de Ferri sobre os índios urbanos foi publicada em 1990 e mostra que a maioria dos imigrantes entrevistados pertence à etnia macuxi (66,7%) e wapixana (30,6%). Entre as motivações para imigrar estão, pela ordem de importância: buscar trabalho, estudar ou fazer estudar os filhos, problemas familiares e problemas de saúde.
Ferri mostra que na cidade os indígenas sofrem discriminações e se ocupam em atividades não-qualificadas e quase sempre de caráter temporário. Os dados revelaram que os índios mantêm parte das suas tradições e tentam adaptar-se ao modo de vida urbano sem abdicar de parte de seus padrões sociais. Diz a autora:

“Um aspecto importante da continuidade discreta da cultura de origem na cidade é a variedade de relações com outros índios do mesmo povo em Boa Vista e a ligação com a própria maloca de origem. Este relacionamento é mais forte e profundo com  a própria família e com os parentes mais próximos (tios, primos, etc.) (Ferri, 1990: 67)
 
Sobre os índios em Manaus temos o relatório de uma pesquisa realizada por equipe da Pastoral Indigenista da Arquidiocese de Manaus (vários autores) e um artigo de Raimundo Nonato Pereira da Silva, ambos de 1996. Essa pesquisa mostrou que a cidade de Manaus abriga famílias de várias etnias sendo as de maior presença: Apurinã, Sateré-Maué, Cambeba, Ticuna e povos do alto rio Negro (Desana, Piratapuia, Baniwa, Baré, Tukano, Tariano e Wanana). Dos 143 domicílios visitados, 62 foram identificados como povos do alto rio Negro, 27 de Apurinã, 17 de Tikuna, 16 de Sateré-Maué, 8 de Cambeba e 13 de outras etnias. Nessas 143 residências vivem 162 famílias num total de 835 pessoas. A pesquisa mostrou que a saída da aldeia e fixação na cidade estão relacionadas a causas estruturais e conjunturais. As respostas obtidas na pesquisa explicitaram as causas conjunturais, as de natureza estrutural não apareceram. Dos que responderam à questão, 51 % disseram que migraram para conseguir emprego, deixando subentender as precárias condições de vida nas aldeias. As outras motivações estão relacionadas ao acesso à saúde (11,8%) e à educação (9,2%); 6,6% disseram ter saído das aldeias em razão dos conflitos internos, 2,6% indicaram a questão da terra. Uma das conclusões a que se chegou a partir dos dados da pesquisa é que eles
apontam a migração não como opção, mas como a última possibilidade de sobrevivência e no limite pode estabelecer-se a seguinte hipótese: a migração para a cidade é a possibilidade do índio continuar sendo índio. Apesar de todos os preconceitos e da longa permanência fora da aldeia, as pessoas assumem a sua condição étnica sem rodeios. Essa questão não é tão fácil de ser entendida, à medida que é contraditória, pois comporta a dimensão do vir a ser, ou seja, ao mesmo tempo que busca identificar-se com o outro numa estratégia de inserção, reafirma sua condição de diferente.”(pg. 77)

O artigo de Raimundo Nonato Pereira da Silva analisa alguns aspectos da identidade indígena na cidade de Manaus e mostra que os indígenas se inserem no mercado de trabalho segundo sua escolaridade: os que possuem segundo grau conseguem exercer funções burocráticas em lojas, hotéis, órgãos públicos e escritórios comerciais. Os que possuem pouca ou nenhuma escolaridade empregam-se como serventes, empregadas domésticas, operários da construção civil e em outras atividades.
De certa maneira a etnografia realizada por Pereira da Silva relativiza a leitura dos pesquisadores da Pastoral Indigenista quanto a assumirem “a sua condição étnica sem rodeios”. Nas relações que estabelecem entre si – entre parentes, entre etnias, dentro de suas associações/organizações – os indígenas afirmam sua condição de índio. O autor percebeu a existência de uma “rede de relações articulada, cujos fios condutores são os vínculos étnicos e políticos, onde valores culturais são recriados e reestruturados” configurando um “território cultural”. Dentro dessa perspectiva Pereira da Silva considera inadequada a utilização de termos como “desaldeado” ou “destribalizado” para esses índios. No entanto, nas relações externas há um processo maior ou menor de escamoteamento dessa condição, refugiando-se os índios na figura do cabapiranga (caboclo amazônico) ou de “quase não-índio”.
Sobre a urbanização dos indígenas da região sul temos as pesquisas realizadas pelo grupo técnico constituído pela FUNAI em 1998 (Portarias 110) para identificação das famílias residentes na cidade de Chapecó-SC.
Outra pesquisa foi realizada em 2000 por Karyn Nancy Rodrigues na dissertação de mestrado sobre os Xokleng que vivem na cidade de Blumenau-SC à qual ainda não tivemos acesso. A pesquisa sobre os Kaingang de Chapecó será nosso objeto de reflexão neste artigo e a ela retornaremos.

O fenômeno recente da urbanização de grupos indígenas no sul

Ao longo da história recente, os povos indígenas estiveram, direta ou indiretamente, vinculados às cidades. À medida que foram sendo expropriados de seus territórios, cidades e fazendas invadiram suas terras tomando conta da paisagem, e os recursos florestais que garantiam a sua subsistência desapareceram rapidamente e os índios foram se tornando cada vez mais dependentes desses núcleos.
As cidades sempre fascinaram as populações indígenas pois concentram a tecnologia do branco. É onde se encontram os grandes magazines, os bancos, as instituições públicas e privadas. Quer dizer, as cidades, com seus ícones da civilização, exercem um poder simbólico sobre os índios que almejam os objetos mágicos dos brancos. É também onde buscam atendimento à saúde e mesmo onde têm seus filhos que passaram a nascer nas maternidades. Portanto, pode-se dizer que hoje os índios não podem viver sem a cidade.
São várias as situações vividas por esses índios. Há os que vivem em áreas indígenas e freqüentam as cidades quando delas necessitam e, nesse sentido pode-se dizer que vivem da cidade. Esse é o tipo de relação que ocorre com todos os índios da todas as áreas indígenas do sul.
Mas temos um aumento de famílias que estão optando por viverem na cidade e buscando alternativas de sobrevivência em empregos urbanos. Como esse projeto familiar e/ou individual é engendrado até se concretizar na mudança geográfica é um processo que ainda não foi estudado de forma suficiente. Na verdade esse fenômeno só foi estudado como objeto específico por Roberto Cardoso de Oliveira que estudou os Terena do Mato Grosso do Sul. A real compreensão desse fenômeno deve: a) analisar o contexto local e regional que impulsiona uma família ou uma pessoa a viver na cidade, b) levar em conta tanto os aspectos objetivos quanto os subjetivos, partindo das condições de vida nas aldeias. De um lado, devem-se observar as condições concretas vividas pelos índios nas áreas indígenas mas, principalmente, é importante multiplicar estudos etnográficos.
O que podemos constatar hoje é a impossibilidade de as famílias das aldeias para realizar minimamente os projetos coletivos e individuais e, é sabido que hoje o desejo de consumo atinge tanto não-índios quanto índios. O caminho em geral percorrido pelas famílias é tentar realizar seus objetivos através do órgão tutelar; quando não conseguem buscam outras instituições como as prefeituras e ONGs. Como as instituições públicas vêm-se sucateando em escala crescente, algumas famílias, ao que parece, decidiram lutar por conta própria, mudando-se para a cidade e procurando empregos urbanos como mão-de-obra não qualificada. 
O fenômeno da urbanização de famílias indígenas nas cidades da região sul revelam que ele atinge todas as etnias: Kaingang, Xokleng, Guarani e Xetá. O processo de territorialização urbana certamente possui razões tanto estruturais quanto conjunturais e escondem projetos coletivos e individuais. Mas como vimos, são pouquíssimos os estudos específicos e pode-se considerar esse processo como um campo ainda desconhecido que exige aprofundamento.
Uma das especificidades da questão indígena na região sul está relacionada à terra. Sendo uma região onde a ocupação nacional se iniciou há 500 anos, a expropriação dos territórios indígenas atingiu de morte várias etnias e as que sobreviveram ficaram reduzidos a minúsculas parcelas das terras como é o caso dos Kaingang e dos Xokleng. No entanto a situação dos Guarani é mais dramática: pouquíssimos grupos tiveram terras delimitadas pelo Estado e a maioria vive como hóspede de outras etnias como kaingang, xokleng e terena. Os Xetá perderam sua terra tradicional no Paraná e os dez sobreviventes vivem em terras kaingang ou nas cidades.
A política de terras nos estados do sul reduziram drasticamente áreas delimitadas no início do período republicano: em 1945 e 1949, no Paraná, as áreas foram reduzidas em quase 90%; no Rio Grande do Sul a redução se deu em 1962. Em todos os decretos e leis o argumento legitimador da expropriação foi o de que os indígenas eram poucos e o Estado necessitava de terras para os colonos estrangeiros e nacionais.
O cálculo para a redução das terras indígenas no sul foi baseado no módulo mínimo utilizado pelo INCRA-Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária  sem considerar que a população indígena, como qualquer outra, é suscetível de crescimento vegetativo. De quando foi feita a expropriação até os dias atuais, a população das áreas indígenas quadruplicou e hoje os índios enfrentam o problema da falta de terras que, somada à deterioração da qualidade do solo pelo desgaste e pela degradação do meio ambiente, não respondem às necessidades de produção agrícola.
Outro fator que aparece como fator de expulsão das famílias das áreas indígenas está relacionado com sua origem: várias áreas indígenas foram criadas para concentrar vários grupos locais kaingang incluindo grupos inimigos. Vale lembrar que o próprio indigenismo instrumentalizou-se dessa inimizade entre os grupos produzindo um acirramento dos conflitos internos e, entre outros desdobramentos perversos das administrações, impuseram-se castigos para os “índios problemas” como o “tronco”, a cadeia e a transferência compulsória para outras áreas. Dos vários depoimentos colhidos entre as famílias da aldeia Kondá alguns referiam-se a esses castigos, algumas famílias disseram ter fugido durante a noite por estarem em risco de vida.
Por outro lado, as condições concretas de vida nas aldeias foram-se deteriorando à medida que o Estado não tem investido recursos em sua política voltada para a auto-sustentabilidade das áreas. A instituição tutelar vem trabalhando sem orçamento há muitos anos e a cada ano enfrentam dificuldades para o financiamento das roças indígenas. Os serviços de atendimento nas áreas de saúde e educação também se encontram nas condições precárias as quais foram lembradas pelas famílias como elementos motivadores da migração para a cidade. A maioria das famílias disseram que depois que foram viver na cidade “nunca passaram fome” ao contrário de quando viviam nas áreas indígenas.
É possível perceber que por trás dessas migrações estão subjacentes políticas indígenas que foram sendo engendradas ao longo do tempo e diferentes estratégias de sobrevivência foram sendo imaginadas e colocadas em prática por famílias em diversas áreas indígenas. As cidades foram se tornando espaços de territorialização onde as famílias buscam alternativas não só de renda pela venda de artesanato e, em situações extremas, pela mendicância e pela prostituição, mas também de solução de problemas de saúde, educação e outros serviços que os equipamentos sociais oferecem.
A presença de famílias indígenas vendendo artesanato na cidade é muito antiga na região sul e muitos grupos passaram a depender desse comércio como fonte de renda, mas sempre retornaram para as aldeias como é o caso dos Kaingang da bacia do Tibagi no Paraná. Os Kaingang da região da bacia do Ivaí-PR também vendem artesanato nas cidades de Manoel Ribas e Maringá assim como os da bacia do Iguaçu o fazem nas cidades próximas às aldeias. Nessas ocasiões as famílias ficam abrigadas em acampamentos provisórios (wãre) feitos de lonas e depois de algumas semanas retornam para suas aldeias.
Esses grupos que vivem nas áreas indígenas e saem esporadicamente para a cidade com várias finalidades podemos dizer que vivem da cidade. A cidade se torna uma extensão de seu território de “caça” e “coleta” e é onde literalmente saem a “caçar” e “coletar” alimentos, remédios, documentos e outros produtos de que necessitam. Praticamente todos os índios das áreas indígenas dependem hoje das cidades e as freqüentam com maior ou menor assiduidade.  

A pesquisa com os índios na cidade de Londrina

A pesquisa de campo nos acampamentos temporários de Londrina foi realizada entre os anos de 1993 e 95. Visitei esses acampamentos e percebi que as famílias acampam de acordo com seus costumes, ou seja, deslocam-se em grupos de parentesco e seguem o mesmo modelo dos acampamentos tradicionais que fazem nas matas e beira de rio quando vão caçar e pescar. O objetivo desses deslocamentos é vender artesanato para comprar alimentos, roupas e outros produtos que a família necessita. Tão logo vendem toda a produção, retornam para a área indígena. Essa pesquisa mostrou que a venda de artesanato na cidade garante a produção e a reprodução social dos Kaingang, hoje talvez transformada na principal fonte de renda das famílias da Área Indígena Apucaraninha. Nas outras áreas indígenas o artesanato é menos importante e as famílias dependem mais dos produtos da agricultura.
  Os Kaingang de Londrina intensificam a venda do artesanato nos meses e semanas que antecedem suas festas. Aí os acampamentos aumentam e é comum contar até 50 famílias na cidade.
Em abril de 1998 a Prefeitura de Londrina construiu vários ranchos com água potável e luz elétrica para abrigar as famílias enquanto permanecem na cidade, de modo que há hoje um wãre moderno e adaptado à cidade. A administração desse espaço fica a cargo do cacique e seu conselho.
Com o dinheiro obtido, as famílias compram roupas para o baile, alimentos e bebidas, pagam conjunto para tocar no baile. Olhando por esse prisma, podemos dizer que viver da cidade garante aos Kaingang de Londrina realizarem suas festas contemporâneas, festas que se constituem os rituais contemporâneos de integração social interna e com os parentes de outras aldeias e amigos da sociedade envolvente.
Nessa reflexão que fiz sobre os índios e a cidade, defendi a tese de que a cidade substituiu a floresta do passado: se antigamente os Kaingang caçavam e coletavam todos os recursos na floresta, hoje o fazem parcialmente na cidade. Isso significa que os Kaingang, seja pela forma seja pelo significado como constituem a cidade seu território, mantiveram o ethos caçador/coletor. Nesse sentido, eles “caçam” e “coletam” na cidade boa parte do que necessitam: alimentos, roupas, remédios, assistência médica, documentos, cestas básicas, bolsas de estudo, aposentadoria, educação média e superior.
Outro exemplo de Londrina a que quero me referir é a experiência de alguns jovens que, não encontrando alternativas de trabalho na aldeia, saem para trabalhar na cidade. Um desses jovens que trabalhou alguns anos em Londrina num supermercado disse que aprendeu muito sobre a sociedade nacional quando esteve morando na cidade. Aprendeu seus códigos sociais, desenvolveu-se pessoalmente como cidadão brasileiro e considerou sua experiência bastante rica. Quando retornou para a aldeia, tornou-se uma liderança e foi eleito cacique por vários anos. Essa experiência significou para ele não uma separação e abandono de sua identidade étnico-cultural mas deu-lhe melhores condições para viver em sociedade, assumindo sua condição de índio mas valorizando o que a modernidade pode oferecer para melhorar as condições de vida de sua comunidade. Ele, através dessa espécie de “estágio temporário” fora da aldeia, através da vivência intercultural, voltou enriquecido para a aldeia. Neste caso concreto viu-se que a experiência na cidade não significou perda de sua identidade social, mas um meio de aperfeiçoamento pessoal forjando um indivíduo mais preparado para assumir papel social como mediador nas relações de negociação da comunidade com a sociedade externa.
Há em Londrina vários funcionários índios no escritório da FUNAI, alguns Guarani e outros Kaingang. Esses jovens buscam além do emprego também a oportunidade de conseguir completar o segundo grau para chegar à universidade. É interessante que alguns desses jovens procuram cursos que possam depois ser-lhes úteis assegurando emprego em suas próprias áreas. Observa-se, portanto que a cidade acaba sendo o lugar que oferece chances de profissionalização e então percebe-se que as populações indígenas estão investindo na escolarização dos filhos como forma de melhorar as condições de vida. Na maioria das áreas indígenas as famílias não têm alternativas de renda; os projetos desenvolvidos pelo indigenismo são insuficientes e é comum não terem o mínimo necessário. Como qualquer sociedade, também a indígena quer ter acesso aos bens da modernidade e para isso precisa de renda. Viver na cidade está, nesse sentido, muito ligado ao fato de nas aldeias não contar com políticas que atendam aos anseios dos jovens e adultos de hoje.
Há ainda algumas famílias que acampam na cidade de Londrina e podem ser consideradas como urbanas porque não mais retornam para as áreas indígenas. Não há ainda uma pesquisa sistemática sobre esse grupo que é originário das áreas indígenas de São Jerônimo da Serra. Temos ainda notícias de uma família morando em favela na periferia e vivendo da coleta de lixo.
A maioria das famílias que freqüentam Londrina são as provenientes da Área Indígena Apucaraninha e são as que consideramos como índios que vivem da cidade. O fato de a Prefeitura ter criado uma infra-estrutura física para que possam permanecer na cidade enquanto vendem seus produtos parece ter consolidado uma estrutura que já existia de forma espontânea: vivem nas aldeias onde fazem roças de subsistência, caçam e coletam nos remanescentes das matas, pescam no inverno nos pari que armam nas corredeiras dos rios e durante períodos de dez a quinze dias a cada dois ou três meses, acampam na cidade. A forma como se territorializam na cidade e a importância do comércio de artesanato para a reprodução social dos Kaingang indica que a cidade se tornou uma extensão do seu território de sobrevivência física e cultural.  

A pesquisa com os Kaingang de Chapecó
Entre dezembro de 1997 e março de 1998 foi realizada uma pesquisa de identificação de uma comunidade kaingang que vivia numa aldeia no centro da cidade de Chapecó-SC. A pesquisa foi solicitada pela Funai de Chapecó que não sabia como solucionar o problema do índio urbano e, no caso da aldeia Kondá, a administração regional vinha sendo pressionada pela população de Chapecó que exigia a retirada das famílias indígenas e sua recondução para as áreas de origem.
A pesquisa de campo acabou revelando que na cidade de Chapecó vivia não apenas o grupo da aldeia Kondá que tinha construído um emã (aldeia kaingang) no Bairro Palmital, centro de Chapecó, mas ainda outros dois grupos: o segundo grupo vivia num terreno baldio perto do câmpus da UNOESC (no Bairro Tiago) e o terceiro no Bairro São Pedro e adjacências. Este terceiro grupo vive disperso no bairro e não forma um emã.
Esta experiência foi muito importante para avançar na compreensão do processo de urbanização de famílias indígenas. Este caso é bem diferente do de Londrina porque lá os Kaingang fazem acampamentos provisórios que eles chamam de wãre e seu emã fica na AI Apucaraninha. Na cidade de Chapecó o que se viu foi a construção de uma emã na cidade. Durante muitos anos os Kaingang fizeram wãre (acampamento provisório) em Chapecó, mas depois acabaram fazendo um emã e passaram a morar na cidade, sem retorno às áreas indígenas.
O que a pesquisa revelou é que essas famílias eram majoritariamente originárias da AI Nonoai e de lá tinham saído porque não suportaram viver o clima de tensões internas e a falta de assistência material em todas as áreas principalmente na da saúde. Para sanar a falta de recursos sempre vendiam produtos artesanais nas cidades próximas à área indígena e costumavam acampar por períodos curtos na periferia urbana ou na beira de estradas. Aos poucos é que foram decidindo pela permanência na cidade sem retornarem à aldeia de origem.
Os dados mostraram que os Kaingang se territorializaram na cidade de acordo com sua forma de organização social. Nesse sentido é que usamos o termo territorialização, porque eles produziram na zona urbana um espaço social kaingang, de acordo com seus próprios códigos. Como o terreno era muito pequeno tiveram que reativar o padrão kaingang de residência uxorilocal dos jovens que se casavam e não tinham espaço para construir barraco próprio. A aldeia Kondá era um enclave cultural kaingang dentro da cidade de Chapecó e quando passaram a reivindicar uma terra na zona rural do município o fizeram a partir da afirmação de sua identidade étnica e cultural. 
O que foi comprovado pela pesquisa de campo é que na raiz das migrações das famílias indígenas para as cidades existem fatores que os expulsam das áreas indígenas. De acordo com o cálculo que elas fazem, nas cidades acabam ganhando uma autonomia que não têm nas áreas indígenas onde são submetidos às regras estabelecidas pelas políticas indigenistas e às pressões das facções dominantes articuladas ao poder tutelar.
A análise dos fluxos migratórios mostrou a existência da seguinte tipologia: 1) da AI para a cidade (por decisão livre ou fuga); 2) de aldeia para aldeia na mesma AI e daí para a cidade; 3) de AI para AI (por transferência forçada) e desta para a cidade; 4) de AI para a cidade e desta para outra AI; e 5) de AI para a zona rural ou urbana, inserindo-se no mercado de trabalho e passando por vários municípios até a cidade.
A pesquisa mostrou, portanto, que a urbanização está relacionada às políticas indigenistas e à situação em que vivem nas áreas indígenas.
 “A inserção nas cidades serve, para, entre outras coisas, legitimar a (sócio) lógica de fissão/migração que, correlacionada com as situações de desigualdade, abandono e constrangimentos que ocorrem nas AIs – por parte do ‘poder tutelar’ e das lideranças (geralmente legitimadas pelo primeiro) –, orienta os Kaingang em seu processo conflituoso – de reelaboração contemporânea.” (Relatório Kondá, 1998: 19)

A pesquisa realizada em Chapecó, analisando a situação dos três grupos kaingang na cidade, mostrou que cada grupo encontrou suas próprias alternativas de sobrevivência. As famílias da aldeia Kondá vivem quase exclusivamente da produção e comércio de artesanato complementada pelas cestas básicas conseguidas junto ao programa do governo municipal. As da aldeia do bairro Tiago viviam do artesanato feminino enquanto os homens se empregavam (a aldeia já foi desativada) no setor de serviços gerais, na cidade e mesmo na zona rural próxima. Alguns índios conseguiam autorização para plantar em terrenos baldios e assim produziam milho, feijão e abóboras para consumo.
No bairro São Pedro e adjacências, as mulheres conseguem trabalho como domésticas e a maioria dos homens trabalha no setor de construção civil. Este é o caso de um grupo de irmãos e outros parentes que conseguiram inserir-se nesse mercado de trabalho com sucesso. As famílias desse bairro disseram que, comparada com a vida que levavam nas áreas indígenas, a vida na cidade é melhor.
Analisando os três casos, a nossa pesquisa mostrou que:
“Se, de um lado, os depoimentos apontam para os mesmos fatores que conjugaram para a saída das famílias entrevistadas, por outro, os três grupos revelam que encontraram diferentes formas de inserção econômica na cidade. Mais ou menos visíveis, instrumentalizando ou não sua condição de ‘índios’, os Kaingang da cidade de Chapecó teceram redes sociais – formadas por afinidades e fidelidades, experiências e trajetórias, estilos de vida, histórias comuns, relações de parentesco, compadrio e amizade – que se expressam nas relações de troca e comércio que envolvem seus balaios e outros artesanatos por eles fabricados, na prestação de serviços domésticos como cortar grama, limpar terrenos; na construção civil local, como pedreiros e ajudantes de obra e mesmo como empreiteiros; como empregadas domésticas e diaristas; o pertencimento às diferentes comunidades religiosas. Essas redes sociais escapam tanto às fronteiras municipais e estaduais quanto às relações de desigualdade e dominação que permeiam as situações de aldeamento nas AIs geridas pelo Estado.
Um olhar distanciado permite visualizar, para além das especificidades de cada um dos três grupos pesquisados na cidade, a estruturação de uma rede social que preserva os mesmos princípios estruturadores da territorialidade kaingang: ao local de residência fixa – a cidade – agregam-se dezenas de outros locais (morada de parentes, locais de venda de artesanato, centros religiosos, etc.) revelando um amplo espaço de mobilidade e (re)territorialização dos Kaingang atuais”. (idem: 27)

 Tanto a pesquisa de Londrina quanto a de Chapecó foram importantes para compreendermos que a sua presença nas cidades está relacionada ao processo mais ou menos recente de (re)territorialização em espaços que faziam parte de sua história. Todos os municípios do médio Tibagi pertenciam aos Kaingang daquela bacia e a terra onde fica a cidade de Londrina era território de caça e coleta dos índios. Por sua vez, a cidade de Chapecó foi erigida sobre território do grupo do cacique Kondá que era o cacique principal de vários subgrupos da região. As aldeias, os cemitérios, o local onde faziam o ritual dos mortos e as áreas de caça e coleta estão na zona urbana, coberta pelo asfalto. Como bem nos disse um Kaingang do Kondá:
“É isso aí que a gente se preocupa porque índio não era prá tá na cidade, mas a cidade vem em cima do que é do índio, vocês pensam que o índio tá invadindo a cidade, mas não é isso aí porque índio já vivia há muito tempo, 80, 90 anos vivia aqui.” (Relatório Kondá, 1998: 95)  

Esse depoimento expressa algo muito fundamental e que não tem sido compreendido: ao se instalarem nas cidades, os indígenas estão (re)ocupando espaços que foram áreas de caça e coleta e agora, mesmo transformados pelo branco, voltam a ser locais de atividades de subsistência física e cultural. Ao se instalarem segundo seus padrões, estão reapropriando-se desses espaços físicos e recriando novos territórios impregnados de modernidade.

Considerações finais
É necessário desenvolver pesquisas etnográficas dos índios na cidade, da mesma maneira como sempre fizemos com os índios nas aldeias, tal como nos ensinou Geertz. Estudos etnográficos sobre os indígenas no sul são poucos, dos Guarani, dos Xokleng ou dos Kaingang. Somente estudos etnográficos nos permitirão perceber o ponto de vista nativo e assim poderemos contribuir para fornecer subsídios antropológicos para a elaboração de programas sociais adequados às aspirações dos índios e não às que a sociedade nacional imagina ou decide que devam ser.
As pesquisas com os indígenas urbanos do Mato Grosso do Sul, Roraima, Amazonas e do sul do país mostram que as famílias são motivadas, de um lado, pelas péssimas condições de vida nas aldeias e falta de expectativas de futuro e, de outro lado, pela esperança de conseguirem na cidade acessar os bens e serviços de que necessitam. Outro dado importante para o qual as pesquisas apontam é que esses índios acabam por produzir territórios indígenas urbanos onde possam manter seus próprios códigos culturais e identitários. 
É importante frisarmos que tanto a pesquisa de Londrina quanto a de Chapecó buscaram apreender o fenômeno da urbanização de acordo com a perspectiva indígena. Esta foi a maneira de superarmos as interpretações passadas baseadas na teoria da aculturação e que durante décadas concluíram que as sociedades indígenas do sul já estariam “aculturados”, ou seja, já tinham assimilado a cultura da sociedade dominante e, portanto, não eram culturalmente diferenciados. Na perspectiva que adotamos foi possível mostrar que mesmo os grupos urbanos continuam fiéis aos seus próprios códigos. Mas vimos também que eles, na conjuntura em que vivem, sem as florestas e seus recursos, sem assistência nas áreas básicas, sem perspectivas de futuro, querem no entanto ter acesso à modernidade mas sem com isso abdicar de sua identidade cultural e étnica.
O sentimento de marginalidade que os índios sentem é exatamente o de não terem acesso aos bens materiais e simbólicos do mundo moderno. Eles querem tudo o que temos e desejamos. Penso que quando ouvimos os antropólogos e os próprios indígenas falarem do direito à diferença, no fundo, falam de uma questão relacionada ao direito à igualdade.

Referências bibliográficas

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[1] Professora aposentada do departamento de ciências sociais da Universidade Estadual de Londrina. Doutora em antropologia social pela USP.
Endereço: Rua Itápolis, 201. 86060-580 Londrina-PR. Telefone: (043) 327-0446. E-mail: kimiye@sercomtel.com.br.

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