terça-feira, 1 de março de 2011

II REUNIÓN DE ANTROPOLOGÍA DEL MERCOSUR
Fronteras Culturales y Ciudadanía
Piriápolis, Uruguay - 11 al 14 de noviembre de 1997


Título da exposição: Os Kaingáng da bacia do Tibagi e suas relações com o meio ambiente
Nome: Kimiye Tommasino
Instituição: Universidade Estadual de Londrina - Paraná - Brasil
GT 30: "Estudos Interdisciplinares dos Jê do Sul"


Introdução

Os Kaingáng constituem o maior grupo étnico indígena do sul do Brasil e vivem hoje nos estados de São Paulo, Paraná, Santa Catarina e  Rio Grande do Sul. No Paraná, se concentram nas bacias dos rios Tibagi, Ivaí e Iguaçu, e estima-se sua população entre 8 e 9 mil. Na bacia do Tibagi, são  mais de 2 mil. Há ainda cerca de 200 índios Guarani que vivem na AI (Área Indígena) São Jerônimo.

A conquista dos territórios kaingáng teve início na segunda metade do século XVIII, mas  foi efetivada nos séculos XIX e XX. Além das expedições de caça e extermínio que caracterizaram a conquista dos índios do sul, as diversas epidemias que assolaram as aldeias foram os fatores que colaboraram para a sua conquista e aldeamento.

A expropriação quase absoluta de seus territórios ancestrais, com a conseqüente colonização e ocupação de suas terras pelos brancos, explica a situação em que vivem hoje: confinados em diminutas áreas delimitadas pelo Estado, assistiram ao longo do contato a destruição da vegetação original e dos recursos materiais e sociais que constituíam o suporte do modo de vida tradicional kaingáng, principalmente no século XX. Tanto as administrações do Serviço de Proteção ao Índio-SPI quanto as da Fundação Nacional do Índio-FUNAI sempre buscaram integrar os índios à sociedade nacional e ao seu modelo econômico, tendo como resultado as condição de miserabilidade e precariedade de suas condições atuais de vida

Os Kaingáng da bacia do Tibagi e as terras de vales e encostas

Tal como em outros Estados e regiões, os Kaingáng que vivem na bacia do Tibagi sofreram as mesmas experiências de conquista, expropriação territorial e devastação de seus recursos naturais. Antes detentores de praticamente todas as terras do médio Tibagi, hoje estão confinados em cinco áreas indígenas (AIs), rodeados pelas propriedades nacionais. O trabalho assalariado nas fazendas das regiões próximas às suas aldeias, o deslocamento para venda de artesanato nas cidades, são práticas  que vêm se intensificando na mesma medida em que as condições de vida dentro das reservas não garantem sua sobrevivência.

Aliado à expropriação sucessiva de suas terras, foram desaparecendo as matas que outrora abrigavam os recursos naturais que garantiam fartura alimentar e alta qualidade de vida. Tanto as administrações do SPI quanto as da FUNAI foram responsáveis pela degradação ambiental crescente ocorrida neste século. A invasão colonizadora selecionou inicialmente as terras de campos e de topografia própria para a lavoura de grandes extensões. As terras que restaram para os índios foram aquelas que não apresentavam tais características e isso explica porque a maioria das AIs se localizam nas terras de relevo mais acidentado, constituídas por morros, vales de rios e áreas de perau. As poucas terras de planalto (terras altas e planas) estão desgastadas pelo sucessivo (re)uso das roças administradas pela instituição tutelar.

Neste trabalho falaremos da importância das terras e águas dos vales, aquelas que ainda  preservaram, pela própria natureza, remanescentes das matas e seus recursos e que, agora,  novamente em nome do "progresso e desenvolvimento", correm o risco de serem engolidas pelas águas de barragens que se quer construir no rio Tibagi[1].

Pretendemos mostrar que os rios (goio), as suas margens (goio fãre) e as matas (nen) próximas das chamadas terras baixas das AIs kaingáng da bacia do Tibagi (AIs Apucarana, Barão de Antonina, São Jerônimo, Ortigueira e Mococa) constituem espaços de sobrevivência e simultaneamente lugares de uma cultura, de uma forma de organização social específica. Constituem espaços de atividades econômicas, sociais e rituais de alta significação para esse grupo étnico. Tendo sido preservadas as bases materiais que sustentavam o modo de vida tradicional kaingáng, esses locais permitiram aos índios manterem, quase intatos, os conhecimentos, as técnicas, as práticas e as representações socio-simbólicas herdadas de seus ancestrais.

Se hoje não podem sobreviver  apenas dos recursos naturais que as antigas e imensas florestas lhes proporcionavam, a  importância socio-simbólica destes espaços aumentou na  medida em que se tornaram espaços de memória dos saberes e fazeres de seus ancestrais. Esse vínculo de continuidade material com o passado tem se constituído num espaço de resistência cultural e de reprodução da identidade étnica enquanto Kaingáng jugjug (índios bravos).

Azcona (1993:204) nos ensina que:

Dar forma humana ao tempo e ao espaço é uma necessidade tão imprescindível como são a natureza e as próprias coisas criadas pelo homem. Pelo fato de instalar-se e reproduzir-se em seu território, cada sociedade aprende a localizar-se nessa cobertura do tempo e do espaço que lhe vem das coisas. (...)
Convém ressaltar que não são coisas em si que proporcionam ao homem a temporalidade e a fixação  num meio contextual. Tempo e espaço não estão na relação dos homens, de sua consciência, com as coisas. Presa às coisas segundo modos diferenciados de sua presença, cada sociedade aprende a construir seu próprio tempo e espaço, numa palavra, seu mundo. Deuses e heróis, antepassados e descendentes, mortos e vivos, a caça e a pesca, a semeadura e colheita, as relações entre eles e com os outros permanecem unidos nesse tempo e nesse espaço que derivam da relação do homem com as coisas. Esta relação constitui o elemento fundamental.


A experiência de contato exigiu que os Kaingáng se adaptassem às novas condições históricas, imprimindo alterações múltiplas no seu padrão de vida. A construção do tempo e do espaço atuais implicou a incorporação e re-significação de elementos novos,  assim como a preservação de elementos tradicionais, no novo contexto, ganhou significados novos. Portanto, nessa dinâmica social que resultou da situação de contato, os Kaingáng foram tecendo o tempo e o espaço atuais. Ao longo dos 150 anos de contato permanente e na condição de povo subalterno e administrado, os Kaingáng foram tecendo no espaço uma dualidade bastante interessante. Nas áreas indígenas, há claramente um espaço onde os Kaingáng vivem a sua condição de tutelado ao indigenismo oficial, constituído pelas terras de planalto. Este espaço situa-se nas terras altas e planas, na área do posto onde trabalham os técnicos e demais funcionários da FUNAI, incluindo aí os funcionários-índios, que também abriga o escritório administrativo, o ambulatório, a escola, a igreja e demais instalações que compõem a estrutura administrativa. Também podem ser incluídas as terras de roças administradas e os pomares "coletivos".

A esse espaço administrado e submetido ao controle do indigenismo oficial, opõe-se um outro, nas áreas periféricas ao sistema tutelar, onde se localizam os remanescentes de matas e campos que constituem celeiros de plantas medicinais, de matéria-prima para fabricar a cestaria, ranchos e utensílios. Também pertencem a esse espaço as terras de encosta, onde fazem suas roças familiares no sistema de coivara, as margens dos rios onde acampam, namoram e descansam, os rios onde se banham, nadam, brincam e constróem seus pari. Enfim, são periféricos no duplo sentido, espacial e temporal. No espaço administrado, vivem segundo regras herdados da experiência de contato e dominação, no outro pólo vivem segundo regras e princípios herdados de seus ancestrais. A dualidade espacial produzida histórica e culturalmente só pode ser entendida na relação  entre os pólos que se opõem e se complementam, formando uma totalidade.

Os Kaingáng vivem essa duplicidade quotidianamente e por isso a reproduzem constantemente. Ao longo de um dia, na alternância entre os dias úteis da semana e os fins-de-semana, das atividades de trabalho e das atividades festivas, os Kaingáng vivem a totalidade da experiência onde se encontram os tempos antigo (vãsy) e novo (uri). Percorrer os diferentes espaços físicos é percorrer temporalidades diferentes. Vive-se  o uri durante o dia, quando estão subordinados ao sistema indigenista; à tarde, após o trabalho, seguem para a beira do rio para pescar (com anzol ou tarrafa) e estarão num outro tempo (vãsy) que usufruem com a família toda ou um grupo adulto de reciprocidade. É comum alguns Kaingáng irem pescar diariamente no rio Apucaraninha, no local da barragem[2]. Chegam no fim da tarde e retornam entre nove, dez horas da noite.

Quando vão pescar nos pari, localizados bem mais distante da aldeia, costumam acampar por alguns dias em wãre que fazem na margem dos rios. Em 1992, quando realizamos um trabalho de campo entrevistando os índios mais velhos, vários depoimentos afirmavam que nestas ocasiões se sentiam completamente livres, "como antigamente", e que lá se sentiam como "índios verdadeiros". Em junho deste ano, num workshop realizado pelo IAP- Instituto Ambiental do Paraná em Curitiba, um representante kaingáng comparou as incursões pelas matas e rios da reserva como equivalente às férias que os brancos tiram quando vão à praia. Como os índios não costumam e nem têm condições de ir ao litoral,  vão para as matas e rios da reserva para descansarem do estresse que a vida atual  produz.  Nas matas e campos das terras dos vales caçam e coletam e nessas ocasiões também acionam os sistemas sociais e simbólicos que orientam tais práticas herdadas de seus ancestrais.

É na relação  entre a vida subordinada nas terras de planalto e a vida livre nas terras "selvagens" que os índios constróem o tempo e espaço de hoje. O sentido particular dos pólos só pode ser compreendido relacionalmente e, portanto, trata-se de uma só realidade social  e o espaço físico espelha a cartografia de sua história. Pode-se ainda arriscar a seguinte hipótese: há um pólo onde se revelam a dominação e as tensões do contato, e outro, onde se revelam a resistência e  a obediência à ordem de seus ancestrais, e o sentido histórico é produzido sinteticamente no jogo permanente entre os pólos. 

Diversidade do meio ambiente e a produção social do território kaingáng

Na cosmologia kaingáng, os universos natural, social e sobrenatural interagem reciprocamente. Homens, animais, vegetais e espíritos estão unidos simbolicamente nos mitos e ritos e mesmo nas ações mais corriqueiras do cotidiano.

Giannini (1994:145) afirma que:

Todos os povos desenvolvem teorias para entender o mundo. A cosmologia de cada sociedade representa a ordenação do universo, ordem esta que está vinculada a todos os aspectos da vida societária. Por outro lado, Lévi-Strauss (1962) coloca que o conhecimento do mundo da natureza repousa no desejo universal que têm todos os povos de conhecer e classificar o seu meio ambiente, seja simplesmente pelo saber em si, seja pela satisfação de impor um padrão ou de ordenar o "caos".


Os Kaingáng distinguem, no seu território, espaços naturais distintos: matas (nen); campos (); rios (goio); serra (krín); capoeira (egohó); baixadas (bêre); alto (krín). Os rios podem ser grandes (goio báng) ou pequenos (goio xín); podem ter cachoeiras () ou corredeiras (). O território kaingáng é codificado, classificado e conhecido nas suas especificidades. Pode-se dizer que os Kaingáng do Tibagi conhecem e exploram significativamente todos os espaços e seus elementos constitutivos.
 
Sendo os conceitos de natureza e sociedade produzidos culturalmente, as relações que estabelecem com a natureza e entre si só têm sentido se conhecermos os diversos sistemas de representação e as conexões que estabelecem entre si. Na concepção kaingáng, cada ambiente é habitado por seres naturais e sobrenaturais. As matas contêm animais, vegetais e seres sobrenaturais. Portanto, ao mundo visível corresponde um mundo invisível, que é necessário reconstituir. A mata possui um espírito-guardião ou "dono", que é o nen tãn. O rio tem o seu goio tãn; a serra, krín tãn e assim por diante. Sendo a natureza múltipla, também são múltiplos os espíritos -"donos".

Há espíritos ruins e bons. As pessoas devem evitar visitar os lugares onde vivem os espíritos ruins (korég), pois eles podem ser perigosos, prejudicá-las espiritualmente. Além dos "donos" (tãn), há um ser malfazejo que os Kaingáng denominam dét korég e que eles glosam como diabo. Mas há natureza boa, como por exemplo, uma determinada mina d'água que é goio hà (água boa) e tem propriedades curativas.

Não apenas os elementos da natureza possuem espíritos. Os seres humanos têm um espírito animal, que é seu iangrê. Nem todos sabem quem é seu iangrê, mas aquele que sabe e se dedica a ele pode se tornar um kuiã  (curador). Os iangrê também podem ser bons ou ruins, ou seja, podem fazer o bem e o mal.

De acordo com os sistemas de representações, suas conexões e implicações, torna-se compreensível que a exploração das matas, dos rios e dos recursos que necessitam para sua subsistência, medicina, matéria-prima, siga uma lógica própria, determinada pela cultura kaingáng e seus princípios subjacentes.

Lógica das relações entre os homens, lógica das relações com a natureza

A sociedade kaingáng se divide em duas metades - Kamé e Kairu - exogâmicas e patrilineares. Segundo o mito de origem do mundo e da sociedade humana, Kamé e Kairu são ancestrais das respectivas metades. Os mitos ainda sugerem que esses ancestrais criaram as plantas e os animais. (Nimuendajú, 1993;  Veiga, 1994)

A sociedade kaingáng estabelece uma oposição de complementaridade e reciprocidade entre os Kamé e os Kairu: trocam entre si mulheres, serviços cerimoniais (cuidados com os mortos e os espíritos dos mortos da metade oposta), animais de caça e, eventualmente, nomes próprios. (Veiga, 1994) A classificação das plantas e animais entre as categorias Kamé e Kairu estende para o mundo natural os códigos que regem a vida social, como veremos a seguir.

 Nimuendajú já tinha observado que a troca entre os homens kaingáng se dá entre cunhados e não entre irmãos. O casamento funda uma aliança entre os homens que são de metades opostas. Além da troca de mulheres e de serviços fúnebres entre metades, observou que a regra também se estende para a caça: "animais que pertencem à metade Kamé devem ser cevados pelos Kairu porque percebe o cheiro dos que são da sua metade, e não se aproxima da ceva". (Veiga, 1994:12)

A pesquisa realizada entre os Kaingáng da bacia do Tibagi revela que o caçador deve seguir alguns procedimentos que podemos chamar de rituais, já que se trata de ações que visam disfarçar o cheiro humano, isto é, trata-se de uma prática ritual para "naturalizar" o homem. O caçador deve passar terra e mato em seu corpo para ficar com cheiro destes elementos. O cheiro (gêre) possui um lugar proeminente na cultura kaingáng. Os elementos da natureza têm cheiros específicos e por eles podem ser identificados. Os homens têm cheiro humano e por isso a necessidade de disfarçá-lo, esfregando mato e terra.  Alguns animais podem ser identificados pelo cheiro, como o cateto e a queixada, outros não são tão susceptíveis ao olfato humano, como a paca e o tatu. Os Kaingáng classificam os cheiros como gêre hà (cheiro bom), gêre korég (cheiro ruim), gêre gû (cheiro forte) e gêre kayá (cheiro azedo, acre). Podem também nomear cheiros específicos: cheiro de flor, cheiro de jabuticaba, cheiro de anta, e assim por diante.

Na pesca também se procede de forma a não espantar os peixes: o pescador deve buscar "ocultar" seu cheiro molhando a roupa,  esfregando também o corpo com coisas do mato. Mulher que usa perfume não deve ir à pesca, ou melhor, qualquer pessoa com perfume industrial pode atrapalhar a pesca.

Sendo os Kaingáng tradicionalmente caçadores e pescadores, as relações que estabelecem com o meio-ambiente implicam  o desenvolvimento do olfato como meio de percepção do mundo e sua diversidade natural. Na verdade, os relatos históricos sobre os Kaingáng afirmam invariavelmente a acuidade extraordinária que estes apresentavam do olfato, da audição e da visão. Mabilde[3] (1983:22), por exemplo, que conviveu com os índios do cacique Braga no Rio Grande do Sul , discorre sobre o assunto da seguinte forma:

Os coroados[4] têm os órgãos visuais de uma agudeza extraordinária e os órgãos auditivo e o olfato os mais sensíveis.
Como os demais selvagens do Brasil, os coroados enxergam a uma distância extraordinária. Onde a vista de um civilizado não atinge sem o auxílio de um bom óculo de alcance, eles reconhecem e diferenciam objetos, às vezes, bem pequenos.
(...)
Qualquer cheiro estranho que se encontra nas matas, os coroados percebem imediatamente. Assim, passando na mata uma pessoa fumando um cigarro, o indígena, passando pelo mesmo lugar, mais de duas horas depois, ainda o percebe. Pelo cheiro do tabaco segue os passos, na direção da pessoa que fumava. Acostumados, igualmente, a queimarem uma só espécie de lenha, geralmente aroeira - corneíba, em tupínico (Schinus molle) -, logo que gente estranha acende fogo no mato, ainda que a grande distância (mais de duas léguas), pelo cheiro reconhecem se o fogo é feito pelos coroados da sua tribo ou por gente estranha. Esta não tem o cuidado - aliás, por ignorar aquela circunstância - de queimar lenha de aroeira.

Convém falar aqui dos indivíduos péin que são as categorias sociais que podem mexer nos mortos. Têm pintura distinta dos demais não-péin. Sua condição está diretamente relacionada com o nome que recebe. Veiga desenvolveu um estudo detalhado sobre nomes kaingáng e apontou a existência de estoques de nomes para cada metade. Há também nomes que são próprios da categoria péin. Na pesquisa  que venho realizando, levantei dados complementares sobre nome : significa terra e, por isso, todos os nomes péin são derivados da palavra e significa que "podem pegar terra". Portanto, pelo nome pode-se identificar a qual metade ou categoria pertence um indivíduo kaingáng e se ele é ou não um péin. Um Kaingáng da AI Barão de Antonina tem uma filha cujo nome está relacionado com terra e assim, através do nome, "a filha já nasce curada". Outro índio da AI Apucarana me disse que sua mulher é péin porque seu nome começa com Ga (Garí), confirmando a informação anterior.  Todas essas informações apontam  na direção de noções ligadas à corporalidade (fabricação de corpos) e construção da pessoa como elementos básicos na cultura kaingáng[5].

Divisão da caça, sistemas de representação e consumo

Os Kaingáng classificam os animais de diversas formas: alguns são comestíveis, outros não; alguns são mais apreciados pela qualidade da carne, outros são comestíveis, mas não tão bons. Os mais apreciados são: okxá (cateto), kambé (veado), oyoro (anta, já considerada extinta na bacia do Tibagi), krendeng (capivara), kreng (queixada), (quati).

O consumo da carne de animais também segue algumas regras relativas aos sistemas de representação do reino animal e  pela concepção de contaminação neles implícita. As ancas, a cabeça e os pés devem ser consumidos pelos velhos e não pelos jovens. Pescoço de frango não deve ser consumido por moças e rapazes, pois eles podem adquirir as manchas que existem nesta parte do animal. A moela de frango não deve ser consumida pelas jovens casadoiras porque estas podem ter parto difícil. Já os velhos podem comer de tudo porque, já estando "feitos" (corpos já construídos?), nada mais lhes poderá acontecer. A restrição ao consumo da cabeça do animal é porque poderão ficar "sem juízo" e "muito esquecidos". Por isso, o cérebro é sempre deixado para os velhos.

No passado, os jovens também não podiam consumir carne de kocamé (paca) porque este é um animal korég e os jovens correriam o risco de morrer ressecados, como acontece com este animal. A lebre (did xú) também não podia ser tocada nem consumida pelo jovem, porque é um bicho preguiçoso e o jovem poderia tornar-se um adulto "descansado",  "parado" e que não gosta de ficar andando. Mas a lebre não é um animal korég. Por outro lado, cada pessoa tem seu iangré animal, que não pode ser caçado nem morto por ela.

Infere-se assim que, quando o caçador se dirige à mata para caçar, toda a estrutura social, seus códigos de ética, padrões de comportamento definidos pelo seu grupo são transportados e acionados por ele. Seu lugar na estrutura social leva-o a se relacionar com os seus companheiros de caça e com os elementos da natureza segundo os princípios e tabus previamente estabelecidos.

Considerações gerais sobre a importância das matas, campos e rios

Acreditamos que os dados até agora coletados já nos revelaram as múltiplas dimensões da importância dessas áreas que se pretende alagar se as barragens forem construídas. Comprovamos que os índios utilizam intensamente os espaços das matas, margens e rios, morros e encostas da bacia do Tibagi. São espaços de  atividades econômicas, sociais e rituais que não poderão ser expropriados, mais uma vez, tendo como justificativa a  ideologia desenvolvimentista, que já está teórica e praticamente superada.

Não se trata, é óbvio, de impedir o desenvolvimento da sociedade, mas de propor novos modelos que consigam integrar o direito à diversidade cultural e à biodiversidade. A construção de barragens têm sido, em todos os casos concretos, uma violência tanto ambiental quanto social. E mais, têm viabilizado a permanência de um  modelo capitalista perverso, que amplia a exclusão social em benefício da concentração da riqueza para poucos.     

Até agora, os Kaingáng puderam viabilizar um modelo próprio de inserção na sociedade nacional, radicado na herança ancestral, porque foi preservada parte das bases materiais que sustentam toda a sua cultura - material, social e simbólica - atual. A construção de barragens e UHEs significará a destruição dessas bases materiais e impedirá a reprodução do modelo tão arduamente construído ao longo de 150 anos. Privados das matas, corredeiras e vales, os Kaingáng estarão privados de sua cultura como um todo. Os Estudos de Impacto Ambiental-EIA que estão sendo elaborados deverão levar isso em conta, sob pena de serem, seus autores, co-responsáveis pela expropriação territorial e cultural que poderá estar em curso.

Bibliografia

AZCONA, Jesús. Antropologia II. A cultura. Vozes, Petrópolis, 1993.
GIANNINI, I. V. Os índios e suas relações com a Natureza. In GRUPIONI, L. D. (org.) Índios no Brasil. MEC, Brasília, 1994.
MABILDE, P. F. A. B. Apontamentos sobre os indígenas selvagens da nação Coroados dos matos da Província do Rio Grande do Sul. IBRSA/INL, São Paulo, 1983.
NIMUENDAJÚ, C. Etnografia e indigenismo. Sobre os Kaingáng, os Ofaié-Xavante e os Índios do Paraná. Editora da UNICAMP, Campinas, 1993.
SEEGER, A. & CASTRO, E. V. Terras e territórios indígenas do Brasil. Encontros com a Civilização Brasileira. 12, Rio de Janeiro, 1992.
TOMMASINO, K. A história dos Kaingáng da bacia do Tibagi: uma sociedade Jê meridional em movimento. Tese de doutoramento. USP, São Paulo, 1995.
VEIGA, J. Revisão bibliográfica crítica sobre organização social Kaingáng. Cadernos do CEOM. Chapecó, UNOESC, no 8, 1992.
_________   Organização social e cosmovisão Kaingáng: uma introdução ao parentesco, casamento e nominação em uma sociedade Jê meridional. Dissertação de mestrado. UNICAMP, Campinas, 1994.
 



[1]Em setembro de 1995 foi assinado um convênio entre a COPEL-Companhia Paranaense de Energia Elétrica com o NEMA/ITEDES da UEL de cooperação mútua para acompanhamento e parecer sobre os Estudos de Viabilidade Técnica, Econômica e Ambiental que estavam sendo realizados pela Intertechne-Leme-Engevix-Esteio de Curitiba, Paraná. Esta pesquisa foi elaborada e está em desenvolvimento porque não há, até o momento, um estudo específico sobre a relação dos Kaingáng com o meio ambiente. Tem colaborado na pesquisa de campo e sistematização dos dados, os alunos-bolsistas Edméia Maria de Lima, aluna do curso de Ciências Sociais e Vladson Paterneze Cunha, aluno do curso de História, da UEL.
[2]Na AI Apucarana há uma Usina Hidrelétrica (UHE) construída no final dos anos 40 e 100 alqueires de terras indígenas estão arrendadas para a COPEL.
[3]Mabilde escreveu este texto entre 1836 e 1866. Como engenheiro que trabalhava na construção de uma estrada na região de Santa Cruz, foi aprisionado pelos Kaingáng e com eles permaneceu por mais de dois anos.
[4]Nome pelo qual eram conhecidos, àquela época, os Kaingáng.
[5]Ainda não tivemos tempo de explorar e analisar o tema da corporalidade e produção do corpo, pois estamos na fase de levantamentos dos dados empíricos.

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