terça-feira, 1 de março de 2011

OS POVOS INDÍGENAS NO PARANÁ: 500 ANOS DE ENCOBRIMENTO[1]


Kimiye Tommasino[2]



              INTRODUÇÃO

              Vivem atualmente no Brasil mais de 200 povos indígenas falantes de, pelo menos, 170 línguas. Essa imensa sociodiversidade é quase desconhecida da maioria dos brasileiros. Aliás, quando se pensa nos povos indígenas, imagina-se que eles só vivem na Amazônia e no Parque Nacional do Xingu. A grande maioria dos paranaenses desconhece os povos indígenas que vivem no Paraná. Muitos nem sequer sabem que eles existem. Este texto pretende revelar aspectos da realidade dessas populações e, fazendo isso, mostrar uma das faces ocultadas pela chamada história oficial, aquela contada pelos conquistadores e que aparece nos livros didáticos.

PARTE I

 

              1. QUEM SÃO E DE ONDE VIERAM OS POVOS PRÉ-COLOMBIANOS


              Os povos pré-colombianos - aqueles que já viviam na América antes da chegada de Colombo - já estão neste continente há pelo menos doze mil anos, conforme as pesquisas dos arqueólogos. Quando Cristóvão Colombo chegou à América Central e Pedro Álvares Cabral atingiu a costa do Brasil, ambos registraram a presença e os contatos com esses povos. Todos os estudantes conhecem as famosas cartas de Américo Vespúcio e de Pero Vaz de Caminha.

                É preciso, no entanto, esclarecer que as denominações “América” e “Brasil” são invenções dos europeus. Do século XVI até meados do XX, eles conquistaram dos índios quase a totalidade de seus territórios, implantando a ordem social e cultural que chamamos de sociedade moderna. As comemorações dos 500 anos em toda a América são para festejar a conquista dos índios e a fundação da América e do Brasil como extensões dos domínios europeus. Para os povos indígenas, no entanto, esses últimos 500 anos representam a perda de seus territórios e de sua autonomia. A chegada dos europeus produziu as mais dolorosas experiências: escravidão, extermínio, perda de seus territórios, epidemias, sofrimento, miséria e toda sorte de humilhações. Na verdade, os povos indígenas não têm o que comemorar, mas estão refletindo como poderão se organizar para que, nos próximos 500 anos, possam conquistar  um lugar mais digno na sociedade.

              Há 500 anos havia centenas de povos distintos vivendo segundo culturas muito diversas e falando línguas bem diferenciadas. Com a chegada dos conquistadores de origem européia, muitos povos foram inteiramente exterminados e outros conseguiram, depois de sofrerem grande depopulação, sobreviver a todas as formas de conquista e hoje vivem esparsos no continente, rodeados de brancos por todos os lados, sempre correndo o risco de perderem as poucas terras que ainda têm. 

              Quando da chegada de Cabral à região que veio a se tornar o Brasil, estima-se que pelo menos cinco milhões de pessoas, que constituíam cerca de 900 sociedades de sociedades produzindo muitas histórias ameríndias, foram surpreendidas pelos europeus, que romperam suas histórias e mudaram o rumo de suas vidas. Atualmente, existem mais de 340 mil índios (0,2% da população nacional) organizados em 206[3] povos ou nações. Na maioria são micro-sociedades, isto é, são demograficamente muito pequenas. Desse total, 83 (40%)  têm uma população de até 200 indivíduos. A população Guarani é a maior, com 30 mil, seguida dos Kaingang e dos Ticuna, com 20 mil cada. Há duas nações (Terena e Makuxi), uma com 15 e outra com 20 mil ; cinco (Guajajara, Sateré-Mawé, Potiguara, Xavante e Yanomami) com cinco a dez mil cada uma; 39 com um a cinco mil cada; 28 têm entre 501 e 1.000; 39 povos têm apenas entre 201 e 500 habitantes. Nas décadas de 50 e 60, alguns chegaram a ser considerados extintos ou em vias de extinção.

              É preciso esclarecer que estes dados estatísticos são daquelas populações que vivem em reservas administradas pelo Estado. Não estão computados os grupos que vivem fora das reservas (chamados “desaldeados”), nas cidades ou na zona rural. Não estão computados também os grupos “isolados” (ainda sem contato) e os grupos “emergentes” do nordeste que só agora começam a ser visíveis e antes viviam ocultos como “caboclos”.

              Outro fato pouco conhecido do grande público é que existem reservas indígenas onde coabitam dois ou mais povos diferentes. Muitas vezes os censos não mostram as etnias minoritárias, criando uma imagem que não é a real. Além disso, por vezes convivem  numa mesma reserva, etnias diversas que foram inimigas no passado. Em todos os casos, essa situação multiétnica de uma reserva é produtora de tensões e conflitos.

              Além disso, como as divisões territoriais indígenas seguem um código próprio e nada têm a ver com as divisões geopolíticas dos brancos, há povos indígenas que vivem em vários estados e mesmo em vários países. É o caso dos Guarani, que vivem no Brasil (nos estados do Rio Grande do Sul, Santa Catarina, Paraná, São Paulo, Rio de Janeiro e Espírito Santo), na Argentina, no Paraguai e na Bolívia. Os Yanomami vivem tanto na Amazônia brasileira quanto na venezuelana. Os Makuxi e Wapixana vivem no Brasil e na Guiana e os Kampa, no Brasil e no Peru. A Tabela 1 mostra um quadro geral da distribuição das sociedades indígenas por Estado e permite visualizar a distribuição geográfica das etnias.



               Tabela 1: Sociedades indígenas e sua população por Estado[4]

Estado

Sociedades Indígenas

População
Acre
Amawáka, Arara, Ashaninka, Deni, Kaminawa, Katukina, Kaxinawá, Kulina, Manxinéri, Nawa, Nuluini, Poyanawa, Shanenawa, Yawanawa
9.868
Alagoas
Cocal, Jerinpancó, Karapotó, Kariri-Xocó, Tingui-Botó, Wassú, Xucurú-Karirí
5.993
Amapá
Galibi, Galibi-Marworno, Karipuna, Palikur, Waiampi, Wayána-Apalai
4.950
Amazonas
Apurunã, Arapáso, Aripuaná, Banavá-Jafí, Baniwa, Barasaná, Baré, Deni, Desana, Himarimã, Hixkaryana, Issé, Jarawara, Juma, Juriti, Kaixana, Kambeba, Kanamari, Kanamanti, Karafawyána, Karapanã, Karipuna, Katawixi, Katukina, Katwená, Kaxarari, Kaxinawá, Kayuisana, Kobema, Kokama, Korubo, Kulina, Maku, Marimam, Marubo, Matis, Mawaiâna, Mawé, Mayá, Mayoruna, Miranha, Miriti, Munduruku,
Mura, Parintintin, Paumari, Pirahã, Pira-tapúya, Seteré-Mawé, Suriána, Tariána, Tenharin, Torá, Tukano, Tukúna, Tuyúca, Waimiri-Atroari, Waiwái, Wanana, Warekena, Wayampi, Xeréu, Yamamadi, Yanomami, Zuruahã
83.966
Bahia
Aricobé, Atikum, Botocudo, Gerén, Kaimbé, Kantaruré, Kariri, Kirirí, Pankararé,  Pataxó, Pataxó ha hã hãe, Xucurú-Kariri, Pankararú, Tuxá
16.715
Ceará
Calabassa, Jenipapo, Kanindé, Karirí, Pitaguari, Potiguara, Tapeba, Tabajara, Tremenbé
5.365
Espírito Santo
Tupiniquim, Guarani M'Biá
1.700
Goiás
Tapuia, Avá-Canoeiro, Karajá
346
Maranhão
Canela, Guajá, Guajajára, Kokuiregatejê, Kreye, Krikatí, Urubu-Kaapor, Gavião
18.371
Mato Grosso

Apiaká, Arara, Awetí, Bakairi, Bororo, Cinta Larga,  Enawenê-Nawê,Hahaintsú, Ikpeng, Irantxe, Juruna, Kalapalo, Kamayurá, Karajá, Katitaulú, Kayabí, Kayapó, Kreen-Akarôre, Kuikuro, Matipu, Mehináko, Metuktire, Munduruku, Mynky, Nafukuá, Nambikwara, Naravute, Panará, Pareci, Parintintin, Rikbaktsa, Suyá, Tapayuna, Tapirapé, Terena, Trumai, Umutina, Waurá, Xavante, Xiriquitano,  Yawalapiti, Zoró
25.123
Mato Grosso do Sul
Kamba, Guató, Kadiwéu, Guarani (Nhandeva e Kaiwá), Ofayé,  Terena, Xiriquitano
32.519
Minas Gerais
Kaxixó, Krenak, Maxakali, Pankararu, Pataxó, Tembé, Xakriabá.
7.338
Pará

Amanayé, Anambé, Apiaká, Arara, Araweté, Assurini, Atikum, Guajá, Guarani, Himarimã, Hixkaryána, Jurúna, Karafawyána,  Karajá, Katwena, Kaxuyána, Kayabí, Kayapó,  Kreen-Akarôre, Kuruáya, Mawayâna, Munduruku, Parakanã, Suruí, Tembé,  Timbira, Tiryó, Turiwara, Waiãpi, Wayãna-Apalai, Xeréu,   Xipaya, Zo'é
20.185
Paraíba
Potiguára
7.575
Paraná
Guarani (Nhandeva e Mbyá), Kaingáng, Xetá.
10.375
Pernambuco
Atikum, Fulniô, Kambiwá, Kapinawá, Truká, Xukurú, Pankararú, Tuxá
23.256
Rio de Janeiro
Guarani
330
Rio Gde. do Sul
Kaingáng, Guarani (Nhandeva e Mbyá)
13.448
Rondônia

Aikaná, Ajuru, Amondawa, Arara, Arikapu, Ariken, Aruá, Cinta Larga, Gavião, Jabutí, Kanoê, Karipuna, Karitiana, Koiaiá, Kujubim, Makuráp,  Mekén, Mutum, Nambikwara,  Pakaanova, Paumelenho, Sakiribiap Suruí, Tuparí, Uru Eu Wau Wau, Urubu, Urupá
6.314
Roraima (10)
Ingarikó, Makuxí, Patamona, Taurepáng, Wapixána, Waimiri-Atroarí, Waiwai, Yanomámi, Ye’kuana
30.715
Santa Catarina
Xokléng, Guarani (Mbyá e Nahndeva), Kaingáng
5.561
São Paulo
Guarani (Nhandeva e Mbyá), Kaingáng, Krenak, Panakararu, Terena
2.716
Sergipe
Xocó
310
Tocantins
Apinayé, Avá-Canoeiro, Guarani, Javaé, Karajá, Krahô, Tapirapé, Xerente
7.193
Total
340.232

              Por serem povos diferentes que vivem segundo visões de mundo e concepções de território próprias é que os antropólogos não costumam falar em povos indígenas do Paraná mas no Paraná, pois os Guarani e Kaingang que vivem neste estado também estão em outros estados. Os Guarani, como vimos, vivem em países vizinhos e os Kaingang, até o início deste século, viveram também na Província de Misiones, no norte da Argentina. Fica claro, então, que território kaingang e guarani não reconhecem as demarcações oficiais de estado e as fronteiras entre países, ou seja, os Kaingang e os Guarani inscreveram, cada um, uma territorialidade própria. E mais: os Kaingang e os Guarani continuam seguindo a lógica de suas territorialidades específicas. 

              2. A HISTÓRIA DO BRASIL E O ENCOBRIMENTO DOS POVOS INDÍGENAS

              Quando os alunos estudam  a História do Brasil, quase sempre os povos indígenas aparecem até o século XVIII. Depois desaparecem, como se os bandeirantes tivessem destruído todos eles. E quando falam da ocupação e colonização modernas, os livros didáticos ensinam que as terras estavam vazias e os europeus só encontraram florestas onde viviam muitos animais ferozes. Quer dizer, contam uma história na qual os povos indígenas que aqui estavam e continuam até o presente são encobertos. No imaginário da população, em geral, principalmente por influência da televisão, só existem índios na Amazônia e no Parque Nacional do Xingu. Nas outras regiões, pensa-se, não existem mais índios. Mas eles vivem em todas as regiões do país, conforme mostra a Tabela 1.

              No Paraná não é diferente. A maioria das pessoas que passaram pelas escolas aprendeu que aqui foram fundadas várias reduções pelos padres espanhóis no século XVI e XVII e que os bandeirantes paulistas destruíram-nas e levaram os índios como escravos para São Paulo. Depois, os textos didáticos não falam mais deles, é como se não mais existissem. Quando se aprende que os portugueses conquistaram dos espanhóis as terras a oeste do meridiano de Tordesilhas e foram fundando as cidades que hoje conhecemos, não se aprende nos livros didáticos que essas terras pertenciam aos índios. Porque a história oficial não conta esses fatos e, quando conta, o faz de forma fragmentada e distorcida? Vamos tentar mostrar alguns aspectos da história indígena ao longo deste texto e revelar que a ocupação do território e a construção da sociedade moderna paranaense foram construídas contra os interesses dos povos indígenas e sobre as terras deles, seus donos originais.

               2.1. A expansão européia na América

              Todos aprendemos que, a partir do século XV, os portugueses e espanhóis  empreenderam grandes expedições para ampliar os seus domínios. Isto significava, em outras palavras, buscar encontrar outros povos para com eles negociar seus produtos que eram comercializados na Europa, gerando riqueza e poder. Assim se explica a “descoberta” do continente americano. Deram o nome de “índios” aos povos que aqui viviam porque, inicialmente, pensaram ter chegado às Índias. O termo “índio” permaneceu e foi incorporado ao nosso vocabulário. 

              Como todos sabem, Colombo e Cabral encontraram milhares de povos que aqui viviam e das mais diferentes maneiras. Mas todos eles combinavam várias formas de exploração dos recursos naturais, sendo que a base da economia se assentava numa atividade principal (caça/coleta, agricultura, pesca) a qual definia o estilo de vida de cada sociedade. No Brasil, a quase totalidade das sociedades indígenas tinha sua economia fundada basicamente na caça e coleta, embora também plantasse. Esse tipo de economia exige territórios extensos e distribuição de aldeias em pequenos grupos. Na Amazônia ainda vivem segundo esses padrões, mas nas demais regiões os índios já não podem viver como seus antepassados porque as suas terras foram depredadas e delas eles foram esbulhados.   

              Mesmo sendo em sua maioria caçadores-coletores, cada sociedade vivia segundo sistemas culturais muito diversos, que se orientavam por suas tradições, costumes e línguas. E todas essas sociedades eram muito diferentes da cultura dos europeus, cuja economia tem como objetivo o lucro e a acumulação de riqueza. Depois dos portugueses e espanhóis, vieram outros europeus (ingleses, franceses, holandeses) que competiam com aqueles na exploração das riquezas deste continente.

              2.2. A importância da terra na cultura

             Apesar da grande diversidade cultural entre as sociedades, os povos indígenas classificam o mundo de modo muito diferente do da sociedade ocidental. Não há, por exemplo, a dicotomia que opõe o homem à natureza. Muito ao contrário, na concepção cultural de muitos povos pré-colombianos, há uma continuidade entre os mundos social, natural e sobrenatural. Assim, os índios concebem a natureza como o espaço físico onde homens, seres naturais e sobrenaturais interagem e estabelecem relações de reciprocidade mútua. Fica compreensível porque os povos indígenas, ao longo de tantos mil anos, sempre respeitaram seu meio ambiente, retirando da natureza tudo que fosse necessário, mas criando técnicas de manejo e de reposição da natureza ou de exploração que não redundassem jamais em extinção dos recursos naturais.

Cada sociedade elabora a sua concepção de tempo e espaço conforme a sua visão de mundo, a qual também orienta as suas práticas e relações sociais e simbólicas com a natureza e entre si. Alcida Ramos[5] esclarece que, para as sociedades indígenas, terra é muito mais do que simples meio de subsistência. Ela representa o suporte da vida social e está diretamente ligada ao sistema de crenças e conhecimento. Não é apenas um recurso natural mas - e tão importante quanto este - um recurso sociocultural.

Na concepção da maior parte dos povos indígenas, o território tradicional é onde habitam homens, espíritos de seus ancestrais e outros seres sobrenaturais. A concepção indígena de território ganha assim uma dimensão sócio-político-cosmológica bem mais ampla do que na concepção ocidental. Os índios dependem, na construção de sua identidade tribal, dessa relação mitológica com seu território, sítio da criação do mundo, memória tribal e  mapa do cosmos[6]. Para a maioria dos povos indígenas, a terra onde estão enterrados os seus ancestrais torna-se sagrada e as experiências vividas ao longo do tempo projetam no território a sua identidade social, que vai configurar uma territorialidade num espaço físico determinado com seus rios, montanhas, matas, compondo um mosaico variado e concreto, que se tornam os elementos simbólicos de sua cultura e história. 

              Nos 500 anos da invenção do Brasil, podemos dizer que os povos indígenas continuam lutando contra essa invasão, que só trouxe miséria, doença e pobreza material  a todos. A guerra contra os índios não acabou e aos índios resta continuarem lutando para não serem física e culturalmente exterminados. E de todas as lutas, a mais fundamental é a luta pelo direito às suas terras tradicionais, pois a natureza compõe o seu acervo cultural e dela depende tanto a continuidade física quanto cultural.
 

              3. AS POLÍTICAS PARA OS ÍNDIOS NOS 500 ANOS


Os povos indígenas, desde os primórdios da colonização européia, sofreram todas as formas de dominação política, as quais visavam ao objetivo principal dos europeus de conseguirem extrair o máximo de riqueza deste continente, primeiro em nome do reino português e/ou espanhol, depois em nome do império e agora, da república.

Os índios constituíram a primeira mão-de-obra na derrubada do pau-brasil que era levado para a Europa. Foram escravizados e, como escravos, trabalharam em todos os tipos de atividade que os conquistadores europeus determinassem: nas plantações, como mateiros e como canoeiros, como carregadores dos produtos que eram embarcados para Portugal e Espanha. Foram utilizados para perseguir outros grupos indígenas que resistiam à conquista e até mesmo para perseguir grupos da mesma etnia que se recusavam a se submeter ao domínio do branco.

No projeto de construção do Estado nacional, os povos indígenas foram tidos como povos de “cultura inferior”,  “atrasados”, “primitivos”. Influenciados pela ideologia evolucionista que classificava a cultura e organização social européias como “superiores”, buscaram-se formas de “civilizar” os índios através da catequese e imposição da cultura estrangeira.

Documentos dos períodos colonial e imperial revelam que, ao mesmo tempo que se aldeava os índios para serem utilizados como mão-de-obra, também se tentava fazer com que abandonassem a vida de caçadores-coletores. Com isso ensinavam a viver em grandes aldeamentos controlados pelos brancos, o que possibilitava a liberação das terras para os fazendeiros, agricultores ou criadores de gado. Combinado com essas políticas havia também um estímulo para que se casassem com os escravos africanos e brancos pobres, como forma de criar uma sociedade constituída da mistura de raças. Daí se explica porque os índios e negros foram tomados como “raízes” do “povo brasileiro”, pertencentes ao passado e sem direito ao presente.

O tamanho das atuais reservas foi definido a partir de um critério branco, criado pelo governo nacional em acordo com os governos estaduais. Todos os projetos indigenistas do Estado visavam a transformar os indígenas em trabalhadores nacionais. E isso seria conseguido através de políticas segundo as quais, ao final do processo, os índios seriam transformados econômica e culturalmente em não-índios. Essa política integracionista acreditava que, com a catequese e ensinamentos de técnicas agrícolas, com os costumes “civilizados”, língua portuguesa e adestramento ao trabalho, todos os indígenas passariam da condição de “índios” a “trabalhadores nacionais”. É nesse sentido que se diz que os índios, no projeto nacional, eram povos transitórios. 


              3.1. A vida em reservas indígenas

              Com a proclamação da república, o Estado passou a estabelecer políticas para os povos indígenas que são, em essência, uma continuidade das políticas do período imperial. As sociedades indígenas vivem em reservas que são áreas delimitadas pelo Estado com finalidades objetivas: através de políticas assimilacionistas deveriam ser, paulatinamente, “integrados à comunhão nacional”. As reservas foram criadas no governo republicano, mas a política de aldear e confinar os índios em espaços físicos delimitados, começou no período colonial.

A política de aldear ou reservar os índios tinha a ver, nos primeiros séculos, com a necessidade de mão-de-obra para implantar as bases da nova sociedade de origem européia no continente. A falta de mão-de-obra era tão grande que mais tarde os portugueses ainda trouxeram escravos africanos para trabalhar nas lavouras de cana-de-açúcar e em muitas outras atividades. Os povos indígenas, donos que eram dessas terras, fugiam para os sertões do interior para não serem escravizados e muitos, mesmo escravizados, fugiam quando podiam. Mas a maioria que ia morar nas aldeias em torno de São Paulo, por exemplo, morria das doenças trazidas pelos europeus, para as quais os índios não tinham desenvolvido defesa natural.

Depois que acabou a escravidão, os índios passaram a ser considerados empecilhos para que a nova sociedade se desenvolvesse. E isso porque defendiam seus territórios que estavam sendo invadidos pelos portugueses e paulistas, com o objetivo de implantar fazendas de gado e de agricultura. Muitas expedições de conquista foram organizadas pelo governo imperial a fim de primeiro submeter ou afugentar os indígenas para depois fundar as fazendas e povoações.

Aos grupos submetidos os governos delimitavam uma área para viverem e plantarem artigos de subsistência e de exportação. Como todos os povos indígenas resistiam contra a dominação e atacavam as povoações e fazendas, estes foram considerados inimigos do império, e D. João VI chegou a declarar guerra de extermínio aos que viviam em Minas Gerais, Paraná e Santa Catarina. Como a própria Carta de D. João VI explicita, os índios, que eram os donos das terras, passaram a ser exterminados porque impediam o “progresso” da penetração da sociedade invasora. Ainda hoje essa situação ocorre nos estados da região amazônica.

A política de fundar aldeamentos, no período imperial,  ou  reservas, no período republicano, tinha dois objetivos: o primeiro era juntar os índios em pequenas áreas delimitadas para transformar as terras indígenas em fazendas e cidades; o segundo era manter sob controle essas populações e para isso havia sempre uma guarnição militar para garantir a segurança das famílias estrangeiras que passaram a viver nas novas regiões conquistadas. Não raro os indígenas atacavam essas famílias e, em muitos casos, conseguiam reconquistar parte de suas terras. Mas ao longo dos 500 anos dessa história de contatos, os povos indígenas foram perdendo a maior parte de suas terras tradicionais. Há ainda alguns poucos grupos (presume-se que cerca de 40 pequenos grupos) vivendo isolados na Amazônia, fugindo sempre de qualquer contato. Isto significa que, como bem lembra Ailton Krenak,  para esses povos 1.500 ainda não aconteceu. Nesse sentido, diz ele, o encontro com o Outro continua acontecendo todos os dias.[7]

Dentro das reservas, os indígenas da maior parte do país já não são como seus antepassados, que viviam da caça, coleta e agricultura de pequena escala. Em Santa Catarina e no Rio Grande do Sul, os Kaingang plantam soja, trigo e produtos de subsistência. Mas, em geral, os índios vivem da agricultura de subsistência e alguns produzem artesanato comercial. Muitos deles têm ainda de se assalariar nas fazendas próximas às reservas para complementar a renda. Em vez do padrão de vida que no passado era de muita abundância, hoje estão vivendo na miséria.

Nas regiões do sul, sudeste e nordeste, os povos indígenas vivem um padrão de vida muito próximo ao do camponês pobre e adquiriram, do contato de vários séculos,  muitos hábitos e costumes nacionais. Essa semelhança formal acaba tornando-os quase invisíveis, pois costumam ser confundidos com os camponeses da mesma região. Na Amazônia e no Parque Nacional do Xingu, porém, alguns povos puderam manter seus costumes e tradições e ainda podem viver da caça, pesca e coleta, até porque estão em terras mais amplas do que nas regiões de ocupação mais antiga. Apesar da destruição florestal em andamento, ainda podem viver dos recursos florestais.

 Nas regiões sul, sudeste e nordeste, essas condições não existem: as florestas da Mata Atlântica e as florestas de araucária foram destruídas para dar lugar às fazendas e cidades, e a exploração da madeira deu-se também dentro das reservas indígenas. Junto com as florestas, foi exterminada a maior parte da biodiversidade que garantiu, durante milênios, os recursos naturais que sustentaram o modo de vida desses povos. A esses índios só resta viver de uma agricultura extensiva ou semi-intensiva, em solos irremediavelmente empobrecidos pela exaustão e deterioração. Com o aumento da população, que vem ocorrendo desde o início dos anos 80 em quase todo o país, a fome vem se generalizando, pois as poucas terras que lhes restaram são insuficientes para atender as necessidades.

Com a alteração radical do modo de vida dos índios depois do contato, a vida nas reservas gerou uma série de conseqüências negativas para os índios: o sedentarismo produziu doenças que antes não havia; a mudança na alimentação e a adoção de produtos introduzidos pelo branco, como o açúcar, por exemplo, trouxeram problemas não apenas de saúde bucal, mas que alteraram profundamente as condições gerais de saúde; as habitações, antes dispersas, tornaram-se aglomerados que pioraram as condições sanitárias da população; a dependência econômica tem obrigado os homens a saírem das reservas para trabalhar como diaristas, o que também traz problemas de ordem social, pois desorganiza a produção familiar que está fundada na divisão do trabalho segundo seus próprios padrões; o contato trouxe o alcoolismo em quase todas as reservas, e hoje se constitui um dos mais graves problemas, porque produz conflitos internos e externos de toda ordem; a fome e a desnutrição têm promovido grande mortalidade infantil e depauperado a saúde de toda a população.

Em todo o país, não bastasse a expropriação de seus territórios, todos os dias temos denúncias de invasão de terras das reservas, e os conflitos com os fazendeiros, posseiros e garimpeiros são inúmeros. Muitos líderes indígenas foram assassinados por defenderem as terras de seu povo. Em quase todos esses crimes, tanto os mandantes quanto os assassinos ficaram impunes e, mesmo quando identificados e processados, acabam sendo absolvidos. É o caso dos assassinatos de Ângelo Kretã, cacique Kaingang da Reserva Mangueirinha no Paraná e de Marçal de Souza, líder Guarani do Mato Grosso do Sul, ambos ocorridos nos anos 80.

            Além de todas essas conseqüências nefastas do contato com os brancos, os povos indígenas estão sendo hoje prejudicados pelos grandes projetos que atingem as reservas. Projetos de rodovias, de construção de barragens para fazer usinas hidrelétricas e de exploração mineral têm prejudicado muitos povos indígenas. Retiram deles parte das terras que lhes restaram, destroem e deterioram drasticamente o meio ambiente. Os Yanomami, por exemplo, estão com os seus rios, que fornecem peixes para alimentação e água para beber,  contaminados por mercúrio utilizado pelos garimpeiros, os quais também invadem  as terras de caça e coleta. Por conta da ganância dos brancos, nem mesmo na Amazônia os índios conseguem mais viver tranqüilos. É comum a imprensa denunciar genocídios praticados por garimpeiros e fazendeiros contra os grupos indígenas porque estes defendem seus territórios. 

 


PARTE II


            4. BREVE HISTÓRICO DOS POVOS INDÍGENAS NO PARANÁ


            Como vimos, território é uma concepção que varia de cultura para cultura. Vimos também que vários povos indígenas vivem em muitos estados e mesmo em mais de um país. Por isso é difícil falar só dos índios do Paraná, utilizando o código do branco. Porque os Kaingang vivem  em vários estados: São Paulo, Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do Sul. Os Guarani vivem nos estados do Paraná, São Paulo, Santa Catarina, Rio Grande do Sul, Espírito Santo e nos países vizinhos Paraguai, Argentina e Bolívia.  Por isso, falaremos dos índios no Paraná, ou seja daqueles que hoje vivem neste Estado, mas cujas fronteiras ultrapassam as delimitações dos estados nacionais modernos.

            Para entender a realidade dos povos indígenas no Paraná, foi preciso mostrar que eles fazem parte de uma cultura muito diversa, há muito tempo no continente americano, e que há apenas 500 anos tiveram contato com os invasores europeus. Foi preciso mostrar que cada povo, cada nação ou etnia tinha uma cultura própria, e que o continente americano era constituído por centenas de povos diferentes. Nestes 500 anos, a maioria foi exterminada pelos conquistadores e os que sobreviveram estão hoje vivendo na miséria e na condição de dominados e explorados, nas reservas indígenas do Brasil, do Canadá, dos Estados Unidos. Pertencem ao mundo moderno porque estão submetidos às suas leis maiores, mas não gozam de cidadania plena. As políticas educacionais e de saúde não têm levado em consideração as suas especificidades culturais. Sendo políticas homogeneizantes e indiferenciadas, constituem-se ações que desrespeitam a existência dos sistemas indígenas, baseados em códigos e lógicas que diferem dos sistemas ocidentais.

            Vimos que perderam seus territórios sagrados e vivem em minúsculas parcelas dos antigos e amplos espaços que tinham. Alguns grupos ainda foram deslocados para muito longe de suas terras, numa verdadeira diáspora, por interesses dos brancos que cobiçam as riquezas do solo (madeira, terras para pastagem e agricultura), do subsolo (minérios de vários tipos) e das potencialidades dos rios para exploração de energia elétrica.

Os povos indígenas que viviam na região que se tornou o Estado do Paraná não estão nos mesmos lugares que estavam no século XVI e XVII. Isto porque os Tupi, que habitavam o litoral e eram conhecidos como Carijós ou Cários, foram levados como escravos para São Paulo ou foram exterminados. Os Guarani que vivem hoje no litoral paranaense são os Guarani-Mbyá, provenientes de outros estados, do Paraguai e da Argentina nos últimos séculos. É bom lembrar que, pelo Tratado de Tordesilhas, as terras a oeste do imaginário meridiano pertenciam a Espanha. Os portugueses ultrapassaram em muito esse meridiano, principalmente pela ação dos bandeirantes, e estenderam os limites das terras portuguesas até as barrancas do rio Paraná.

Os Guarani do século XVI que ocupavam a maior parte do interior foram visitados pelos padres jesuítas espanhóis, que fundaram reduções onde os índios eram arregimentados e catequizados. Foram fundadas 13 reduções, distribuídas nas bacias dos rios Paraná, Tibagi, Piquiri, Ivaí e Iguaçu. Essas reduções foram destruídas pelos bandeirantes paulistas, que levaram uma parte dos índios como escravos para São Paulo. A outra parte fugiu com os missionários para a Província do Tape, hoje Estado do Rio Grande do Sul.

Apesar de a maioria dos historiadores afirmar que, depois da destruição das reduções no século XVII, as terras de todo o interior do Paraná ficaram vazias, é certo que muitos grupos guarani e outros grupos étnicos que não aceitaram viver em reduções permaneceram nas florestas.

Por outro lado, os Kaingang que viviam mais a leste, próximos a Serra do Mar, fugindo das perseguições dos portugueses que avançavam em sua direção, foram se refugiar exatamente nos lugares onde se localizavam as reduções. Portanto, com a destruição das reduções jesuíticas, os Kaingang puderam se expandir pelo interior do Paraná, nos séculos seguintes. Relatos deixados pelos próprios missionários indicam que alguns grupos ancestrais dos Kaingang sofreram a experiência das reduções, embora os grupos guarani constituíssem maioria no interior do Paraná. Esse quadro vai mudar do século XVIII em diante, quando os Kaingang se tornam o grupo majoritário.

Para um entendimento da diversidade dos povos indígenas que habitaram e habitam o Paraná atual, apresentaremos cada povo com suas características específicas, para depois mostrar os constrangimentos a que todos foram submetidos. A Tabela 2 mostra as atuais Áreas ou Terras Indígenas no Paraná.  


Tabela 2: Terras Indígenas no Paraná[8]
Terras Indígenas
Aldeias
Etnias
População
Municípios
Área
(Ha)
Palmas
Sede, Vila Alegre
Kaingang
650
Palmas-PR e
Abelardo Luz-SC
2.944,00
Mangueirinha
Sede, Paiol Queimado, Fazenda,
Palmeirinha, Água Santa e Mato Branco
Kaingang
Guarani
1.617
Chopinzinho, Mangueirinha e Coronel Vivida
17.308,07
Rio das Cobras
Sede, Campo do Dia, Taquara, Pinhal, Lebre, Trevo, Papagaio e Vila Nova
Kaingang
Guarani
Xetá
2.263
Nova Laranjeiras e Espigão Alto do Iguaçu
18.681,98
Ocoy
Sede
Guarani
172
São Miguel do Iguaçu
231,88
Marrecas
Sede e Campina
Kaingang
Xetá
385
Turvo e Guarapuava
16.538,58
Ivaí
Sede, Laranjal e Bela Vista
Kaingang
877
Manoel Ribas e Pitanga
7.306,34
Rio D’Areia
Sede
Guarani
51
Inácio Martins
1280,56
Faxinal
Sede e Casulo
Kaingang
450
Cândido de Abreu
2.043,89
Queimadas
Sede, Aldeia do Campo
Kaingang
355
Ortigueira
3.081,00
Mococa
Sede e Gamelão
Kaingang
79
Ortigueira
848,00
Apucaraninha
Sede, Toldo, Vila Nova e Barreiro
Kaingang
662
Londrina
5.574,00
Barão de Antonina
Sede, Cedro e Pedrinha
Kaingang
395
São Jerônimo da Serra
3.751,00
São Jerônimo da Serra
Sede e Guarani
Kaingang
Guarani
Xetá
375
São Jerônimo da Serra
1.339,00
Laranjinha
Sede
Guarani
303
Santa Amélia
284,00
Pinhalzinho
Sede
Guarani
88
Tomazina
593,00
Ilha da Cotinga
Sede
Guarani
68
Paranaguá
824,00
*Guaraqueçaba
Sede
Guarani
62
Guaraqueçaba
861,00
Tekoha - Añetetê
Sede
Guarani
163
Diamante do Oeste e Ramilândia
1.744,70
TOTAL


   9.015**

85.235,030
*Área não Regularizada. 
** Não conseguimos dados de 2001 por área indígena. A estimativa global no Paraná é 10.375, conforme Tabela 1. É importante registrar que os censos só computam os chamados “índios aldeados” , aqueles que vivem em Áreas Indígenas. Podemos, portanto, considerar que a população indígena é maior do que aparece nos censos se fossem computados os que vivem fora das áreas reservadas.



             5. AS POPULAÇÕES DE LÍNGUA TUPI-GUARANI

No século XVI,  viviam no litoral do atual Estado do Paraná povos que falavam a língua da família tupi-Guarani e ficaram conhecidos na historiografia como Cários ou Carijós. Essas populações foram escravizadas ou exterminadas. Os Guarani hoje presentes no litoral atlântico são Guarani-Mbyá que viviam a oeste, no Brasil, Paraguai e Argentina. São povos que empreenderam longas migrações em direção ao leste, impulsionados pelo mito guarani da “Terra sem Mal” nos séculos XIX e XX.

Pelo lado leste, no século XVI, os Carijós ou Cários do litoral foram preados e levados pelas bandeiras paulistas. Mais tarde, com a descoberta de ouro na baía de Paranaguá, passaram a ser mão-de-obra garimpeira, e posteriormente foram recrutados para a guerra contra os holandeses na Bahia. Esses Carijós do litoral não sobreviveram. 

Vivem hoje no Paraná três parcialidades Guarani:  mbyá, ñandeva e kayová. Como dissemos anteriormente, os Guarani formam a maior etnia ou nação indígena no Brasil. São 30 mil apenas no país, mas existem muitos grupos na Argentina, no Paraguai e na Bolívia. No total, são estimados em mais de 100 mil.

Pelo Tratado de Tordesilhas, apenas o litoral do atual Paraná pertencia a Portugal. Todo o resto ficava a oeste do meridiano e, portanto, pertencia a Espanha. A partir daí, entende-se porque, pelo litoral, entraram os portugueses com suas expedições exploradoras de minérios e de escravos índios e, pelo rio da Prata, chegaram os espanhóis ao rio Paraná, na altura da atual cidade de Guaíra e em 1554 fundaram Monte Ontiveros, próximo à foz do rio Ivaí, a primeira povoação espanhola na região. Dois anos mais tarde, a cidade foi transferida para local próximo à foz do rio Piquiri, tendo sido denominada Ciudad Real del Guairá. Em 1579, os espanhóis fundaram Vila Rica do Espírito Santo, onde hoje fica a cidade de Fênix,  às margens do rio Ivaí. Na época, essa região pertencente aos espanhóis chamava-se Província de Vera ou do Guairá. Nessas cidades, depois destruídas pelos bandeirantes paulistas, havia muitos índios escravizados. Esses índios eram submetidos ao sistema das “encomiendas”, desenvolvido pelos conquistadores que eram chamados de “adelantados”. A coroa espanhola autorizava esses “adelantados” a conquistarem os índios, que deveriam ser catequizados e iniciados em ofícios variados para servirem como mão-de-obra nas vilas. Mas esse sistema acabou degenerando em escravidão.

Submetidos a tal sistema, obviamente os indígenas rebelavam-se e fugiam para as florestas que conheciam muito bem. Pelas dificuldades em controlar os índios conquistados, o governador do Paraguai sugeriu ao rei espanhol que confiasse o trabalho de pacificação e conversão dos índios aos padres da Companhia de Jesus. Estes implantaram na Província de Guairá um novo método de conquista e catequese, que era a formação das reduções. Até então, os missionários visitavam as aldeias indígenas nos seus locais de habitação e pregavam o cristianismo. Mas esse trabalho tinha poucos resultados porque os índios acabavam voltando às suas práticas tradicionais e costumeiras, consideradas pecaminosas, atrasadas e pagãs pelos jesuítas.

As principais reduções foram fundadas, a partir de 1610, próximo às margens dos principais rios: ao longo do rio Paranapanema fundaram-se as reduções de Nossa Senhora do Loreto e Santo Inácio; nas margens do Tibagi, fundaram-se as de São José, São Francisco Xavier, Encarnación e São Miguel; no rio Ivaí, as reduções São Tomás, Los Angeles (ou Los Siete Arcanjos), São Paulo e Jesus y Maria; no rio Piquiri, as de Concepción e São Pedro; no rio Iguaçu, a redução Santa Maria e, na margem direita do rio Paraná, na altura da foz do Iguaçu, a redução Natividad. Portanto, somente Natividad ficava no atual Paraguai e as outras 13 em território que é atualmente paranaense.

A maior parte das populações reduzidas era da nação guarani, mas os escritos do Padre Montoya mostram que alguns grupos tinham línguas muito diferentes à do Guarani, o que indica a presença minoritária de outros grupos que hoje se considera como antepassados dos atuais Kaingang e Xokleng. O livro de Montoya relata ainda que, para melhor ministrar a catequese, os missionários aprendiam as línguas desses grupos.  

Os bandeirantes paulistas destruíram  as povoações espanholas e as reduções e levaram milhares de índios que lá viviam para São Paulo, os quais foram vendidos aos fazendeiros. De 1628 a 1632, os bandeirantes destruíram tudo quanto fora construído pelos jesuítas. As reduções do Guairá foram dizimadas por Antonio Raposo Tavares e Manoel Preto. Sabe-se, porém, que um grande contingente fugiu junto com os missionários para o Tape – hoje Rio Grande do Sul –, onde fundaram novas reduções, as quais, posteriormente, também foram destruídas pelas expedições de Fernão Dias Paes, Antonio Raposo Tavares e André Fernandes.

A região compreendida entre os rios Paranapanema e da Prata era alvo de disputa entre portugueses e espanhóis. As reduções na bacia do Tibagi provocaram o temor de que os espanhóis chegassem até Paranaguá. Os ataques dos bandeirantes tinham assim vários objetivos: evitar o avanço do domínio espanhol, obter escravos para trabalhar nas lavouras das fazendas de São Paulo e tentar chegar até as minas de Potosí na atual Bolívia.    

Com a decadência das povoações e destruição das reduções, os espanhóis se retiraram de Guairá, e as investidas das bandeiras paulistas ampliaram o território luso-brasileiro até o rio Paraná, reconhecido pelos Tratados de Madrid  (1750) e Santo Ildefonso (1777).

Com a preação de muitos índios das reduções e a fuga de outros para o Tape, apenas os grupos que não aceitaram viver nas reduções é que permaneceram dispersos nas florestas. Após a destruição das reduções, grupos kaingang que viviam mais a leste  se expandiram para oeste e se fixaram nas mesmas bacias onde elas se localizavam. Por isso, quando se deu a conquista do interior do Paraná, a partir de 1770, são os Kaingang que as expedições tiveram de enfrentar.  

5.1. Os Guarani, seus subgrupos dialetais e a “Terra sem Mal”

É importante saber que entre os Guarani há subgrupos, cada qual com algumas especificidades. Quer dizer, de um lado, pertencem à mesma unidade lingüística e cultural e, de outro, apresentam, cada qual diferenças lingüísticas e singularidades tanto na cultura material quanto na simbólica. Esses subgruposs são conhecidas na literatura antropológica como ñandeva (ou chiripá), kayová (ou paí) e mbyá. Mas eles próprios têm outras denominações de si mesmos e dos outros[9].

A maior parte dos grupos guarani que vive hoje no Paraná veio de estados e países a oeste, nos séculos anteriores. Esses deslocamentos têm a ver com suas crenças religiosas e mitos sobre o fim do mundo. As pressões e sofrimentos trazidos pelo contato com os brancos reforçaram essas crenças e produziram movimentos em busca da “Terra Sem Mal”, lugar mitológico onde se realizam todos os desejos que não podem realizar-se neste mundo. Associada à crença do fim do mundo, essa constitui o complexo profético-migratório tupi-guarani. Em vários momentos surgiram pajés (Nhanderú; Paí) que profetizaram o fim do mundo, e os grupos saíram em busca da terra prometida que, para a maioria, se localizava a leste. Assim, esperavam alcançar a “Terra Sem Mal” antes da catástrofe final e, consequentemente, obter a salvação.  

As pressões sobre os territórios guarani pelos conquistadores brancos certamente se tornaram um novo componente nesse movimento em direção ao leste. Nimuendaju e Schaden, dois estudiosos da sociedade e cultura Guarani relatam sobre os messianismos guarani desde o início do século XIX, o que nos permite compreender como se deu a dispersão dos principais grupos. Para alguns autores, a dimensão mítico-cosmológica que impregna todas as outras esferas da organização social guarani explica porque, apesar de todas as pressões e violências do contato, os Guarani mantiveram-se como grupo étnico e cultural específico.

Os Mbyá, que hoje vivem no complexo estuarino lagunar Cananéia-Guaraqueçaba-Paranaguá, segundo Maria Inês Ladeira, comprovam, através de sua versão dos mitos sobre a construção do mundo e dos cataclismos que os abalaram, que sua ocupação “à beira do oceano”, ocorre desde a criação do primeiro mundo: yvy tenonde[10].

As populações guarani estão distribuídas em várias regiões do Paraná, em 10 áreas ou reservas indígenas. Algumas foram reservadas em áreas reservadas aos Kaingang, como nas de São Jerônimo, Mangueirinha e Rio das Cobras. As demais reservas são: Laranjinha, Pinhalzinho, Rio de Areia, Rio de Areia I e II, Tekohá Añetete, Avá-Guarani ou Ocoí e Ilha da Cotinga.

Mas existem muitas famílias guarani que não vivem nas áreas reservadas e estão dispersas nas zonas rurais e urbanas de vários municípios. Todas as famílias guarani, “aldeadas” ou “desaldeadas”, mantêm vínculos de sociabilidade que atravessam todas as nossas fronteiras internas e se expandem até o Paraguai e Argentina.


            5.2. Os Xetá: da “descoberta” em 1953 à extinção na década de 1960


            Os Xetá pertencem à família lingüística tupi-Guarani. Viviam nas matas da Serra dos Dourados, próximo às atuais cidades de Douradina e Ivaté, noroeste do Estado do Paraná. Os dados aqui apresentados sintetizam a importante pesquisa de Carmen Lúcia da Silva[11] sobre o processo de extermínio desse povo, que ocorreu tão recentemente e que a sociedade paranaense e seus historiadores insistem em encobrir.

            As primeiras notícias sobre a presença dos Xetá na região apareceram entre 1949 e 1950. As companhias de colonização que estavam loteando as terras xetá encontraram indícios de sua presença. Em 1952, um menino xetá foi capturado pelos agrimensores da Colonizadora Suemitsu Miyamura & Cia Ltda. Em 1953, outro menino foi capturado. Em dezembro de 1954, um grupo de seis Xetá procurou Antônio Lustosa de Oliveira, dono da fazenda Santa Rosa, o qual tinha se estabelecido dentro do território xetá. Em outubro de 1955, a 7a Inspetoria Regional do Serviço de Proteção ao Índio (SPI) organizou uma expedição para localizar as aldeias desses índios. Os expedicionários encontraram aldeias e objetos abandonados pelos Xetá. Em novembro do mesmo ano, outra expedição seguiu para a Serra dos Dourados, levando as duas crianças para tentar fazer contatos. Na fazenda Santa Rosa, encontraram os primeiros Xetá que tinham procurado a fazenda Santa Rosa e continuaram nas proximidades. A expedição encontrou uma aldeia onde vivia outro grupo. Uma menina dessa aldeia foi levada para Curitiba por um funcionário do SPI.

            Em 1955 foi proposta a criação de um Parque Estadual na região, com o objetivo de  aldear os Xetá.  De 1958 a 1961 foram realizadas viagens de pesquisas sobre os Xetá: uma equipe composta por lingüista, antropólogo, arqueólogo e cinetécnico. Foram fotografados, filmados, pesquisados na sua língua e na sua cultura material. Todo esse material encontra-se nos museus de Curitiba e de Paranaguá.

            Enquanto isso, os colonizadores avançavam rapidamente, invadindo as terras tradicionais dos Xetá. Em 1956, um grupo foi massacrado por brancos. Em 1958, foram vistos caminhões da Companhia Brasileira de Colonização e Imigração (COBRINCO) conduzindo os Xetá para fora da Serra dos Dourados e ninguém sabe qual foi seu destino.

            Em março de 1961, um grupo de três Xetá foi levado para a Reserva Indígena Pinhalzinho, no município de Tomazina. Em maio deste mesmo ano, foi criado o Parque Nacional das Sete Quedas, que tinha por objetivo abrigar os Xetá. Entre 1962 e 1963, a imprensa denunciou um massacre dos Xetá por lavradores sem-terra e registrou grupos xetá vagando pela cidade de Umuarama, em estado de completo abandono. Em 1963, uma família xetá foi levada pelo SPI para a Reserva Indígena Marrecas, município de Guarapuava.

            Entre 1964 e 1976, morreram oito dos Xetá contatados. Destes, alguns habitavam nas proximidades da Fazenda Santa Rosa e outros foram levados pelo SPI para viver nas reservas  ou Guarani. Dos que tinham permanecido nas matas de Serra dos Dourados não se teve mais notícias. Foram todos exterminados? Atravessaram o Paraná e foram para o Mato Grosso? De todas as perguntas, uma pode ser respondida: os Xetá desapareceram do cenário paranaense e deles  restaram apenas oito indivíduos.

            As crianças e os jovens que sobreviveram são hoje adultos e foram criados por famílias brancas, levados para diferentes lugares. Sobre eles diz a antropóloga Carmen Lúcia da Silva: Quanto aos sobreviventes Xetá, atualmente eles não têm um território ou aldeia. De caçadores e coletores vivem na condição de assalariados, empregados domésticos ou bóias-frias, totalmente dependentes da sociedade dos brancos. De herdeiros de um território de ocupação tradicional, simbólico e cultural, vivem como agregados em terra Kaingang, Guarani ou como inquilinos no meio urbano-rural. De um povo organizado em famílias nucleares, vivem hoje separados, cada um num ponto do estado do Paraná, uma em São Paulo e outro em Santa Catarina.[12]

              Os Xetá representam e expressam parte da história de conquista e extermínio dos povos indígenas no Paraná. De nada adiantou a existência de órgãos que tinham como objetivo garantir-lhes a proteção física, cultural e territorial. De nada valeram a presença e atuação de pesquisadores brasileiros e estrangeiros. Somos todos responsáveis pelo extermínio de um povo cujos sobreviventes estão, eles próprios, recuperando os fragmentos da memória do extermínio de seu povo. 

              6. OS POVOS JÊ MERIDIONAIS

Os Kaingang e os Xokleng formam as duas etnias que constituem os Jê meridionais. Os primeiros antropólogos que as estudaram consideravam que se tratava de uma só etnia com diferenças dialetais. Atualmente os dois grupos são considerados como etnias específicas, embora pertencentes à mesma família jê. Além das línguas aparentadas e semelhantes entre si, os Xokleng e os Kaingang podem ter constituído, num passado não muito remoto, um só grupo.

Encontramos outros grupos da família lingüística Jê nas regiões  norte e noroeste do Brasil, que assim se dividem: Kayapó, Kraô, Gavião do Tocantins, Xavante, Apinayé, Canela Xerente e Suyá. 

              6.1. Os Kaingang: a saga de um povo valente


     Lá está, naquele morro passa a divisa desta área. E passa por aqui também. Mas os fóg entraram todos já. Agora nós só temos um pedacinho que está ao lado do rio Apucarana Grande. Mas agora não estamos comendo as coisas que comíamos antes, por causa que não tem mais os matos. Aqueles tempos nós íamos atrás das coisas que comíamos quando acabavam as coisas de comer. Então aqueles tempos nós éramos sossegados. (Depoimento de mulher kaingang , Área Indígena Apucaraninha)

Os Kaingang formam o maior grupo étnico indígena no Paraná. Estima-se uma população entre oito e dez mil. O aumento da população é um dado importante no contexto da política kaingang: até algumas décadas atrás, o uso de anticonceptivos e abortivos era comum nas áreas, mas estes métodos foram abandonados e hoje o aumento da população pode ser pensado tanto como resultado dessa política interna quanto das melhorias no atendimento à saúde pelo órgão indigenista.

              Os Kaingang, que viviam mais concentrados na região da Serra do Mar, acossados pelas investidas dos portugueses que buscavam escravizar mais índios para trabalhar na mineração ou para serem vendidos em São Paulo, foram-se refugiando para o oeste, ao longo da Serra Geral que se espalha por todo o interior dos estados do sul. Em cada região a Serra Geral ganha nomes específicos: no Paraná  temos  a Serra da Apucarana, Serra da Esperança, Serra da Pitanga e Serra da Ortigueira.  Olhando o mapa do estado, verifica-se que os Kaingang se fixaram nas regiões onde antes se localizavam as reduções jesuíticas, nos vales das principais bacias.

A conquista efetiva dos Campos Gerais pelos luso-brasileiros começou em 1770, no interior do atual estado do Paraná, território de vários grupos. Foram organizadas 13 bandeiras entre 1768 a 1774.  Vários campos foram “descobertos” e “reconhecidos”. Quando as terras do chamado “sertão” e “campos gerais” começaram a ser povoadas pelos brancos, os Kaingang  já tinham se estabelecido nas bacias do Tibagi, Ivai, Piquiri  e Iguaçu.

Os campos de Koran-bang-rê (hoje Guarapuava) começaram a ser conquistados em 1770, mas o governo provincial levou mais de 100 anos para efetivar a conquista dos Campos Gerais. Depois de Koran-bang-rê,  os portugueses conquistaram Kreie-bang-rê (Palmas) e outros campos que, mais tarde, na Guerra do Contestado, passaram a constituir território catarinense.

O primeiro grupo kaingang entregou suas armas e aceitou viver em colônias indígenas em 1862, na região de Guarapuava. A partir desse primeiro centro de ocupação branca, outros foram sendo conquistados nas bacias do Ivaí, Tibagi e Iguaçu, no atual Estado do Paraná. Mas como os territórios indígenas ultrapassam os espaços codificados por brancos, essa conquista continuou em direção às principais bacias do estados de Santa Catarina e Rio Grande do Sul. Ao norte, no Estado de São Paulo, os Kaingang foram conquistados a partir de 1912, e os últimos grupos kaingang no Paraná foram conquistados em 1930.

No Paraná, desde meados do século passado, ou seja, desde o período imperial, os Kaingang passaram a viver em aldeamentos administrados por missionários ou civis, que tentaram todos os métodos para que abandonassem o seu padrão de ocupação territorial e formas de subsistência baseadas na caça e coleta. Isso de certa forma foi conseguido. Com a perda de quase a totalidade de seus territórios de caça e coleta, os Kaingang tiveram de se adaptar às novas e terríveis condições: foram expulsos de suas terras e ficaram confinados em espaços exíguos. A devastação das matas, que se transformaram em cafezais, pastagens e cidades, obrigou os Kaingang a viver das plantações que os administradores dos aldeamentos lhes determinavam fazer.

As terras delimitadas pelo governo imperial foram ainda reduzidas mais radicalmente no governo republicano, em nome do “progresso” e sob a argumentação de que os indígenas já estariam “integrados” à sociedade nacional. Foi dessa maneira que se fez a maior e mais intensa ocupação pioneira do Paraná: cada palmo de terra foi, no início, conquistado pelas armas e, depois, pelo confisco que o próprio Estado realizou, para entregá-la aos colonizadores estrangeiros e nacionais.[13]

Até o início do século, havia quatro grandes grupos ocupando as quatro principais bacias do Paraná. Atualmente há apenas algumas reservas kaingang nas bacias do Tibagi, Ivai e Iguaçu. Os Kaingang conseguiram manter pequenas ilhas de terra que estão envolvidas pelas propriedades privadas dos brancos. Hoje vivem em minúsculas terras denominadas áreas ou reservas indígenas, ilhados e sempre pressionados por invasores brancos. São atualmente 11 áreas indígenas, sendo que algumas comportam mais de uma etnia.

Estudos antropológicos recentes têm revelado que, apesar do assalariamento a que têm de submeter para sobreviver, de terem de vender artesanato e até mesmo se urbanizarem, os Kaingang não perderam as suas especificidades socioculturais e, assim como os Guarani, Xokleng e Xetá, têm afirmado cada vez mais que se consideram “índios”. Ao marcar essa alteridade, comunicam que continuam sendo distintos dos brancos.

Apesar das mudanças radicais em seu modo de vida, de terem perdido a maior parte de suas terras, de terem de viver subordinados, continuam referindo-se como descendentes daqueles que aqui estavam antes do primeiro branco aportar em suas terras.  É importante registrar que nos últimos anos vários grupos e Guarani conseguiram a devolução de algumas terras que tinham sido expropriadas no passado, não apenas no Paraná, mas também nos demais estados do sul.

A organização social em grupos de parentesco e reciprocidade nas atividades de pesca, nas roças de coivara, na venda de artesanato na cidade continua sendo seguida pelos Kaingang. A regra da uxorilocalidade (costume em que o jovem casal deve morar na casa do pai da esposa, isto é, o genro deve morar com o sogro) tem sido retomada quando há déficit de residências. A uxorilocalidade está diretamente relacionada com a reciprocidade existente entre os cunhados, pelo lado masculino, e entre as irmãs, pelo lado feminino.

Por outro lado, mesmo quando há transformações sociais, percebe-se que os Kaingang seguem uma lógica própria deles; não adotaram o modelo de pensamento ocidental. É o caso, por exemplo, dos acampamentos que alguns Kaingang passaram a fazer na cidade para vender seu artesanato. A forma como organizam o grupo e se instalam é a mesma de quando acampam na beira dos rios e nas matas para pescar ou caçar. Apenas passaram a acampar também nas cidades porque hoje dependem da venda de seus produtos para a obtenção de dinheiro para comprar alimentos, roupas e calçados.

Do ponto de vista sociocultural, pode-se afirmar que os Kaingang, apesar de todas as políticas oficiais integracionistas e da modernização introduzida pelo indigenismo nas reservas indígenas, continuaram pautando suas ações a partir dos princípios estruturais e simbólicos da cultura tradicional. Vários pesquisadores da história e da cultura kaingang têm demonstrado isso. 

6.2. Os Xokleng que viviam no Paraná

Hoje não há nenhuma reserva xokleng no Paraná. Mas eles habitaram em regiões do Rio Negro e Palmas e lutaram bravamente para defender seus territórios. Foram perseguidos e caçados por bugreiros (matadores profissionais de índios), e os que sobreviveram aos massacres vivem numa única reserva - Área Indígena Ibirama - em Santa Catarina.

Os Xokleng  tinham seu território a leste dos territórios kaingang. Foram duramente perseguidos pelos bugreiros e o próprio rei D. João VI declarou guerra contra eles. No Paraná, viviam, na região compreendida a oeste da escarpa da Serra do Mar, desde as proximidades de Porto Alegre até perto de Curitiba; a oeste seu território se estendia até o vale do rio do Peixe (afluente do Uruguai) e a noroeste até Guarapuava. O território xokleng fazia fronteira a oeste com os territórios dos Kaingang, com os quais travavam guerras constantes.

A ocupação dos territórios xokleng deu-se a partir dos séculos XVIII e XIX, com a abertura de uma estrada ligando São Paulo, mais especificamente Sorocaba e Viamão no Rio Grande do Sul. Conhecida como estrada da Mata, cortava o coração do território xokleng. As freqüentes invasões de seus territórios pelos tropeiros que transitavam por essa estrada provocaram fortes reações dos Xokleng, que muitas vezes atacaram as caravanas, provocando, pelo lado dos brancos, guerras de perseguição. Na segunda metade do século passado, ocorreram vários massacres de ambos os lados na região do rio Negro.

Em 1875 foi criado o Aldeamento de São Tomás de Papanduva, no sertão do rio Negro. Mas os Xokleng não aceitavam a vida em aldeamento e continuaram nas matas, saqueando as plantações das fazendas, atacando os brancos que se fixavam em seus territórios e os tropeiros que os atravessavam. Como até 1877 não tinham conseguido nenhum contato amistoso que pudesse resultar na pacificação dos Xokleng, o governo decidiu extinguir o Aldeamento de São Tomás de Papanduva, que tinha toda a infra-estrutura para abrigar índios aldeados.

Em 1880 foi organizada uma expedição de caça aos Xokleng que tinham atacado várias vezes as fazendas de gado de Papanduva e Estiva. Além de matar o gado e levar os produtos das roças, em um dos ataques mataram três filhos de um fazendeiro. Era a resposta dos Xokleng contra as famílias que tinham se instalado em seus territórios de caça e coleta. Nessa expedição foi feito prisioneiro um cacique que faleceu no dia em que o grupo retornou a União da Vitória. Participaram dessa expedição índios kaingang que viviam no Aldeamento de Xapecó, hoje pertencente ao Estado de Santa Catarina.

Apesar da enérgica resistência, aos poucos os territórios xokleng foram sendo ocupados e os índios foram sempre fugindo dos contatos, sentindo a cada ano as conseqüências da redução dos seus territórios de caça e coleta. Além disso, o grande número de expedições contra os Xokleng produziu baixas na população e forçou um grupo a entrar em contato com os brancos em 1914. A pacificação dos Xokleng deu-se sob a direção de Eduardo de Lima e Silva Hoerhan, funcionário do SPI. Entre as estratégias para conseguir "pacificá-los", mandou levar dos aldeamentos de São Jerônimo e Apucarana, várias famílias kaingang. Os descendentes desses Kaingang ainda vivem na Área Indígena Ibirama. Os Xokleng que viviam na região de Papanduva e de Palmas foram exterminados ou figiram para os estados do Sul. Não há na atualidade, nenhuma Área Indígena Xokleng no Paraná.  





              7. OS POVOS INDÍGENAS NA VIRADA DO MILÊNIO: SUAS LUTAS, SEU FUTURO


A Constituição Federal promulgada em 1988, pela primeira vez na história republicana, diz, no seu Artigo 231: São reconhecidos aos índios, sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens. Se as constituições passadas definiam os povos indígenas como transitórios e outorgavam ao Estado promover a sua integração tanto econômica quanto cultural, hoje a relação entre Estado e sociedades indígenas mudou radicalmente.

Do direito no papel para a transformação da realidade, há um longo percurso a ser percorrido: de um lado, os povos indígenas, através de suas organizações representativas e com o apoio de segmentos sensíveis à sua causa, buscam a exigência do cumprimento da lei; de outro, a sociedade nacional, através dos órgãos responsáveis pelas questões indígenas, deverá somar esforços para que os direitos indígenas se tornem realidade e modifiquem a atual situação de miséria e desrespeito por parte da sociedade envolvente.

O problema central da questão indígena está na terra. Sem a garantia das terras que tradicionalmente ocupam, não há como tornar realidade as demais instâncias, como saúde, educação, qualidade de vida. Terra e cultura são dois elementos indissociáveis para a realização dos preceitos constitucionais.

Nas comemorações apologéticas que os órgãos oficiais estão promovendo dos 500 anos, o que têm a comemorar os povos indígenas? O que significou para eles esses 500 anos de história indígena? O que têm a comemorar os sobreviventes Xetá?

              Dada a natureza desta discussão, não teremos uma conclusão a apresentar. Mas, diante de algumas mudanças que vêm ocorrendo nestas duas últimas décadas - crescimento da população em quase todas as áreas indígenas, maior conscientização política dos índios, surgimento de movimentos sociais organizados de lutas pela terra, pela preservação ambiental, por políticas específicas de educação escolar e de saúde e, agora, com a nova constituição -, temos elementos para esperar que o terceiro milênio seja o do resgate dessa dívida histórica do Brasil para com seus povos, que aqui já vivem há milhares de anos e não apenas 500.

*****

Sugestões para leitura sobre os povos indígenas no Paraná

1-      Carmen Lúcia da Silva - Sobreviventes do extermínio. Uma etnografia das narrativas e lembranças da sociedade Xetá.  Dissertação de mestrado. UFSC. Florianópolis. 1998.
2-      Lúcio Tadeu Mota - As guerras dos índios Kaingang: a história épica dos índios Kaingang no Paraná (1769-1924). Maringá, Editora da Universidade Estadual de Maringá. 1994.
3-      Kimiye Tommasino  A história dos Kaingang da bacia do Tibagi: uma sociedade Jê meridional em movimento. Tese de doutoramento. USP. São Paulo. 1995.
4-      Ricardo Cid Fernandes Autoridade política kaingang: um estudo sobre a construção da legitimidade política entre os Kaingang de Palmas/Paraná. Florianópolis, UFSC. Dissertação de mestrado. julho de 1998.
5-      Maria Inês Ladeira O caminhar sob a luz: o território Mbyá à beira do oceano. São Paulo, 1992. Dissertação de mestrado. PUCSP. 1992.
6-       Maria Inês Ladeira Yvy Pau ou Iva Pau “Espaço Mbyá entre as águas ou o caminho aos céus.”: os índios Guarani e as ilhas do Paraná. Centro de Trabalho Indigenista-CTI [S.I.]. 1990.




[1] A versão original deste texto foi publicado na coletânea do livro Geografia Social e Agricultura (organizado por Jorge Ulisses Guerra Villalobos e editado pelo Programa de Pós-graduação em Geografia-UEM), pp. 95-128. Tivemos autorização do organizador para esta publicação.
[2] Professora aposentada da Universidade Estadual de Londrina. Doutora em antropologia pela Universidade de São Paulo. É pesquisadora do Programa Interdisciplinar de Estudos de Populações/Laboratório de Arqueologia, Etnologia e Etno-História da UEM. Endereço eletrônico: kimiye@sercomtel.com.br .
[3] Ricardo, Carlos Alberto. “Os Índios” e a Sociodiversidade Nativa Contemporânea no Brasil. In: A Temática Indígena na Escola. Aracy Lopes da Silva e Luís Donisete B. Grupioni (orgs.) MEC/MARI/UNESCO. Brasília. DF.
[4] Os dados da tabela foram retirados do site da FUNAI-Fundação Nacional do Índio. Dados capturados em http:/www.funai.gov.br/mapas/etn.html em 11 de maio de 2001.
[4] Ramos, Alcida Rita. Sociedades Indígenas. São Paulo, Ática. 1986.

[5] Ramos, Alcida Rita. Sociedades Indígenas. São Paulo, Ática. 1986.
[6] Seeger A. & Castro, E. V. de. Terras e territórios indígenas no Brasil. SBPC. 1978.
[7] Krenak, Ailton.  O eterno retorno do encontro. In: Adauto Novaes (org.) A Outra Margem do Ocidente. MINC-FUNARTE/Companhia das Letras. São Paulo. 1999. p. 25. 
[9] Para obter dados sobre a cultura e as parcialidades guarani consultar os seguintes autores:  Curt Nimuendajú As lendas da criação e destruição do mundo como fundamentos da religião dos Apapocuva-Guarani . Hucitec-EDUSP, São Paulo, 1987 e Egon Schaden Aspectos fundamentais da cultura guarani.  Difusão Européia do Livro. São Paulo. 1962.

[10] Ladeira, Maria Inês. Os Guarani na Mata Atlântica. In: Povos Indígenas no Brasil 1991/1995. Instituto Socioambiental. São Paulo, 1996. p. 776.

[11] Silva, Carmen Lúcia da. Os sobreviventes do extermínio. Florianópolis. Dissertação de mestrado. UFSC. 1998.

[12] Silva, Carmen Lúcia da. Os sobreviventes do extermínio. Florianópolis. Dissertação de mestrado. UFSC. 1998.  pg. 227.
[13] Para um melhor aprofundamento desse processo, consultar o livro de Lúcio Tadeu Mota, As guerras dos índios Kaingang: a história épica dos índios Kaingang no Paraná (1769-1924);  Kimiye Tommasino,  A história dos Kaingang da bacia do Tibagi: uma sociedade Jê meridional em movimento. Tese de doutorado, USP, São Paulo. 1995; e Lúcio Tadeu Mota, O aço, a cruz e a terra: índios e brancos no Paraná provincial.   Tese de doutorado, UNESP/Assis. Assis, 1998.


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